A entrada principal

A entrada principal tinha uma larga porta em carvalho, rendilhada com vitrais, representando a “anunciação do anjo a Maria”.

Quando se abria a pesada porta, dois degraus de granito, subiam para um Hall com chão de mármore rosa e preto. Uma segunda porta, trabalhada em vitrais, isolava o Hall do resto da residência.

À tarde, quando o sol batia nos vitrais, eu gostava de me sentar ali, a pensar no que aquelas figuras representavam.

Porque seria que uma porta tão bela não estava à vista de toda a gente?

A Casa

A casa tinha custado oitenta mil réis por volta dos anos quarenta. Tinha quinze assoalhadas, um sótão que acompanhava a casa toda e uma cave.

Na cave, duas fileiras de arcadas com um pé alto enorme, sustinham toda a moradia.

A fachada estava pintada de azul, e as janelas debruadas, estavam pintadas de branco.  No lado esquerdo um pequeno portão dava acesso a um corredor forrado a pedras de calçada. Era nesse corredor, resguardada de olhares, que existia a imponente porta principal. Tinha também um jardim que dava para a segunda entrada da moradia.

O preço foi muito barato. Ninguém a queria e as pessoas mais antigas, quando passavam por ela benziam-se.

A casa pertencera ao padre da aldeia, que constava, se teria enforcado num dos quartos principais. Era o quarto branco que o avô escolheu como quarto do casal.

O pedófilo

O quarto verde era o maior de todos os quartos daquela casa. Foi para lá que a tia Adelina e o “Pico” foram viver, quando se casaram. O avô comprou-lhes a mobília de quarto, e passaram a comer lá em casa.

O “Pico” arranjou trabalho na fabrica Braço de Prata, era uma fábrica, de armas e munições.

À tarde quando vinha do trabalho, trazia-me sempre ou um chocolate ou um pequeno brinquedo ou livros. Depois sentada no seu colo, eu vivia as histórias que ele me contava. Os três porquinhos, a branca de neve, o soldadinho de chumbo etc…. etc… etc… .

Quando me deixava dormir no cinema ou na esplanada, era ele que me trazia para casa ao colo. Dava-me banho, deitava-me e ensinou-me a importância de ler.

Um dia pediu-me para ir brincar com ele às escondidas para a cave.

O caixão

Todos os brinquedos estavam no meu quarto, menos a Zázá que continuava a viver no quarto azul. Sempre que eu queria brincar com ela tinha que pedir a alguém que me abrisse a porta para eu poder brincar.

Num desses dias, abriram-me a porta e deixaram-me ficar lá sozinha.

A minha atenção foi atraída para uma enorme caixa de bombons com uma pintura muito bonita na tampa. Julguei ter descoberto o porquê daquela porta estar sempre fechada, mas não.

A caixa de bombons estava cheia de fotografias e eu sentada no chão ali estive entretida a vê-las uma a uma.

Numa das fotografias estava deitada dentro de um caixão, uma senhora alta e magrinha,vestida de preto, mas com um lenço branco que lhe apertava os maxilares.

A avó estava na cozinha a fazer o almoço, quando eu apareci com ar comprometido. Escondida atrás das costas estava a fotografia.
– O que foi menina?
– Já não queres brincar mais?
– O que é isto avó?
– Aiii… Aiii…. Jesus Senhor, que criança atrevida! – Quem lhe manda mexer onde não é chamada.

A avó limpou as mãos ao avental, sentou-se e pegando na fotografia disse:
– Meu Deus, tantos anos já passaram.
– Esta senhora era a tua bisavó, mãe do teu avô.

A fotografia

Pescadinha & Zazá

Vestiram-me um vestido azul de veludo com gola branca, bordada com bolinhas azuis, vermelhas e amarelas. Em baixo, na saia, losangos de gorgorão nas mesmas cores da gola, enfeitavam um circulo branco. Atrás das costas um laço azul compunha o vestido. Nos pés meias de renda e os meus sapatos vermelhos. Prendendo os cabelos loiros, um farfalhudo laçarote.

Quando entrei no eléctrico para Lisboa, com a Zázá ao colo causei sensação. Parecia saída de um postal ilustrado!

As pessoas interagiam comigo e eu muito orgulhosa mostrava-lhes as habilidades da Zázá.

Um senhor fez-me uma festa e disse-me: – Não sei qual é mais bonita, se a dona se a boneca.

Para a posteridade ficou a fotografia.

A prenda

Passaram dois dias sobre o meu terceiro aniversário, quando o avô me foi acordar.

Salta da cama pescadinha, vamos buscar a tua prenda… está no quarto azul. Ensonada, corri para o quarto azul.

Em cima de dois bancos, mesmo perto da minha cara, estava uma caixa comprida, atada com um enorme laçarote de cetim. – Vamos abre o teu presente; disseram as tias. Eu puxei uma ponta do laço, e elas ajudaram-me a abrir a caixa.

A Zázá surgiu… estava a dormir, mas quando lhe peguei abriu os seus olhos azuis e disse: – Papá Mamã.
 
– Avô ela fala. Fala e anda.
– Que linda .

O ataque de histerismo

A avó também pagou pela ira do avô. Disse-lhe coisas terríveis e chamou-lhe maluca imprestável. Depois saiu.

As tias, os tios, o meu pai e a minha mãe que entretanto tinham chegado, tentavam que ela se acalmasse. Coitada o sistema nervoso dela era muito frágil.

Quando ela se acalmou voltaram-se todos contra a tia Adelina, que por sua vez entrou em histeria e gritando em altos berros dizia:
 
– Vocês não me compreendem … eu quero PICHA!!! PICHA!!! PICHA!!!

Todos se riram.

A Cruz – Azul

O “Pico” continuava a sangrar, por isso chamaram um enfermeiro da Cruz Azul, que lhe suturou a cabeça com três pontos.

Pelas duas horas da tarde, o avô chegou da faina. Vinha com cara de vendaval.

Na mesa da marquise, poisou o cabaz de vime, com o peixe acabado de pescar e dirigiu-se com rapidez para o quarto da tia Adelina. Aterrorizada ela escondeu-se atrás do “Pico”, que estava branco como a cal. Com a mão esquerda empurrou o “Pico” que caiu na cama, e com a direita deu na tia Adelina uma chapada monumental.

Ao “Pico” disse-lhe; – Grande sorte, se tivesse sido eu a dar-te essa pancada, eras um homem morto.

Tá quieto pá… tá quieto…

O tio Victor usava uns óculos redondos, tipo fundo de garrafa. Sem eles não via nada, mas quando ouviu o assobio estridente, sinal de que alguém tinha pulado a janela, mesmo sem óculos não se fez rogado, pegou na tranca de ferro e desferiu trancadas a torto e a direito, no vulto que se debatia por debaixo dos cortinados.
 
– Tá quieto pá… tá quieto:
– Sou eu o Mário.

Entretanto o amigo do avô também chegou… já não havia maneira do avô não saber.

Com o burburinho toda a gente acordou naquela casa, menos a avó que tomava soníferos.

O guarda – nocturno

Decerto nessa noite o avô foi preocupado para a faina da pesca. Em Casa deixou o tio Victor encarregue de manter os olhos bem abertos. Na rua a vigiar ficou um homem de sua confiança para ajudar no que fosse preciso.

Fora alertado pelo guarda – nocturno, que pela calada da noite alguém andava a rondar a nossa casa tendo sido visto a empurrar a janela que distava do chão pouco mais de um metro.

A janela era a do quarto verde e naquele quarto não dormia ninguém.