A Máquina do Tempo

Todos os anos por volta de Julho e até ao fim de Agosto, o barco  “Pai e Filhos”, ia pescar para o Algarve. Uma semana depois seguíamos nós, isto é… o Avô, a Avó e eu. Viajávamos de comboio, que saía da estação do Barreiro.

Na altura 1950 mais ou menos, fazer aquela viagem era para mim  algo sobrenatural. Eu tinha medo, medo e curiosidade, daquela máquina assombrosa, que chegava a resfolegar, silvando, cheirando a ferro em brasa, e que exigia ser constantemente alimentada. Dois seres afadigavam-se nessa missão. Vestiam camisolas cavadas, enegrecidas  como eles,  pela fuligem e pelo fumo.

Quando o chefe da estação apitava, o mostro respondia com um enorme silvo. Eu sentia-me dentro de uma máquina do tempo, que se deslocava devagarinho e começava a falar cada vez mais depressa, conforme ganhava velocidade… Pouca-Terra … Pouca -Terra.. Poucaterra..poucaterrra.

Depois a planície, o cheiro a melão maduro, a figos e a amêndoas, as passagens pelos túneis a que antecedia o silvo estridente da coisa, logo seguido do acender  das luzes, em que o comboio se enchia de fuligem e fumo.

Nessa altura, as pessoas viajavam com as coisas mais incríveis. Lembro-me de uma senhora que levava duas galinhas dentro de uma cesta, a certa altura uma das bichas soltou-se, e era vê-la a correr pelo corredor, voando e cacarejando.

Chegados a Tunes, tínhamos que mudar de comboio, este mais moderno que nos levava até Faro. Contudo era viagem para seis ou sete horas.

Depois era desfrutar o Sol e as belas praias de quentes águas.

Comboio a vapor a entrar num tunel
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A “Olhos de Boi”

Ás vezes o peixe ainda chegava vivo lá a casa. Sardinhas e carapaus, eram o principal da pesca, mas na rede vinham sempre três ou quatro linguados, duas ou três pescadas, alguns robalos etc. Para casa vinha sempre o que de melhor se pescara.

Nós comíamos bastante peixe, mas não conseguíamos consumi-lo todo, por isso o Avô mandava distribui-lo pelos vizinhos, que normalmente apreciavam o gesto.

Em frente da nossa casa, num prédio com dois andares, morava no R/C um casal com um filho. Eram gente muito pacata e educada. A senhora era alta e magra, com cabelos pretos com uns olhos muito grandes e pestanudos.

As minhas tias chamavam-lhe a “Olhos de Boi”. Toda a minha vida eu ouvi, quando se referiam à vizinha, chamarem-lhe a “Olhos de Boi”.

Acontece que o Avô me perguntou se eu queria ir levar o peixe às vizinhas, e eu toda contente aceitei.

A coisa não me correu muito bem, enganei-me e toquei para o primeiro andar:
 
– Quem é ?
– É da casa da D. Olhos de Boi?
– Toca no outro botão menina!

Assim fiz, e voltei a perguntar:
 
– É da casa da D. Olhos de Boi?
– A senhora abriu a porta, olhou para mim com os olhos muito abertos e pestanejou três vezes…
– Assustei-me,  larguei a cesta com o peixe , e corri espavorida para casa.

O Alquimista

Eu não via a aparência rude do senhor Amílcar. Para mim ele era um Alquimista… um Mago… daqueles com barrete pontiagudo e capa de veludo.

Transformar as frutas e as bagas em líquidos coloridos com sabores fantásticos… encantava-me.

Eu não desgrudava do senhor Amílcar e apercebi-me que à sua sabedoria não faltavam mistérios e segredos. Antes de se ir embora fazia para o Avô, que tinha bronquite crónica, um creme para pôr no peito à base de cera de abelha, eucalipto e cânfora, e para a Avó, fazia um creme de pétalas secas de rosa.

Eis aqui a receita de um dos licores que eu mais gostava:
 
 
 
Licor de Tangerina

6 tangerinas inteiras
1 litro de uma boa aguardente de vinho (eu só tinha direito a 1 litro de agua mineral)
1/2 kilo de açucar mascavado
4 cravos da India
raspa de nós moscada
um pau de canela

Picam-se as tangerinas com um alfinete  a toda a volta e põem-se em infusão num frasco de boca larga com 1 litro de boa aguardente de vinho.

Junta-se um pouco de nós moscada, um pau de canela e o 1/2 kilo de açucar mascavado e 4 cravos da India.

Deixa-se em infusão durante 20 dias e ao fim deste tempo filtra-se.
 
 
 
Fácil, não é?

Bom proveito.

O Mestre Licoreiro

O Senhor Amílcar era um homem baixo de feições grosseiras.

Mais ou menos de três em três anos instalava-se lá em casa durante um mês para fazer os seus licores.

Trazia sempre dois cestos de verga grandes carregados com os seus apetrechos de trabalho.

Sacos de linho cheios de diversas ervas apanhadas na serra, caixas de madeira cheias de bagas de diversos feitios, latas que continham pós coloridos, garrafas e frascos cheios de líquidos de cores vibrantes.

Em cima da mesa estavam dois livros:

Um com magníficos rótulos com muitos recortes dourados e desenhos de frutas… eram lindos, e estavam protegidos por papel transparente.

O outro, eram diversos papeis cosidos artesanalmente e estavam em bastante mau estado…estavam mesmo sebosos! Esse era a soma de suas experiências.

 

Mas a mistura dos cheiros… a anís, a côco, a amêndoa, a café, a  mel, a damascos… era fantástico!

Ainda hoje os sinto quando me lembro dele.

As Consequências

A muito custo, porque os limos o faziam escorregar, o senhor guarda lá conseguiu sair do chafariz. Puxou da pistola e disparou para o ar dois tiros.
A esquadra era ali bem perto, colegas vieram rapidamente em seu auxilio e deram voz de prisão ao meu pai.

Estávamos em 1938 e os actos praticados eram considerados muito graves. Rasgar uma farda, e pôr um senhor guarda de molho, era caso para um anito de prisão efectiva.

Os amigos foram-se chegando e explicavam que o Zé era um bom rapaz que não fazia mal a ninguém, que aquilo foi um copito a mais.
Entretanto avisaram o meu avô que só se deslocou à esquadra no dia seguinte para falar com o chefe, de quem era conhecido.

O guarda nunca desistiu da queixa, mas durante sete anos, que foi o tempo da extinção do processo, comeu todos os dias o melhor peixinho fresco da sua vida.

Durante muito tempo os amigos quando o viam gritavam-lhe:

Óh Zé Ganço… vai dar banho ao policia.

O banho do policía

Gostava de se sentar nos bancos do jardim que ladeavam o largo da princesa, muito perto de sua casa.
Era um sitio muito fresco rodeado de árvores. No centro o chafariz, deixava correr de quatro bicas agua fresca e cristalina.
Ouvir o som da água a correr, o chilrear dos pássaros e ver as gentes que volta e meia se apeavam na paragem do eléctrico, aliado ao sabor do fumo de um cigarro, deixavam-no de bem com a vida.

Mas lidava muito mal com a frustração e quando a minha mãe não lhe aceitou o pedido de namoro, foi para a taberna “Cova Funda”, que ficava na parte de baixo do chafariz e apanhou um grande pifo.
Depois foi sentar-se na beira do chafariz da princesa a carpir as suas mágoas.

Foi quando um policia se aproximou e lhe disse:

– O senhor não pode estar aí… pode cair e afogar-se!
– E o que é que você tem com isso?
– Já lhe disse… tem que sair daí! Vá para casa…
– Para casa vá você… eu só saio daqui quando me apetecer, até lhe canto uma cantiga…

Daqui não saio daqui ninguém me tira
Daqui não saio daqui ninguém me tira

Daqui não saio daqui ninguém me tira
Daqui não saio daqui ninguém me tira

– O senhor está a gozar a autoridade, olhe que lhe dou ordem de prisão; disse o guarda agarrando-o pelo braço…
– Tire daí a manápula senão a coisa azeda!!!
E a coisa azedou mesmo, quando o guarda o puxou para que saísse. Jogou-lhe a mão à farda e arrancou-lhe os botões todos. Depois pegou no senhor guarda e deu-lhe banho no chafariz.


Foto Original de Luis Miguel Inês:http://luismiguelines.blogspot.pt/

Maria Rosa

Maria Rosa fez-se uma linda mulher e o meu pai caiu de amores por ela.

Ela não lhe deu grande bola era filha irmã e neta de pescadores. Sabia bem as dificuldades que isso acarretava.

Não queria para ela essa vida, queria para ela alguém que não estivesse ligado ao mar.

Além disso havia certo rapaz que trabalhava na construtora e era amigo do Jorge…

Quando soube, o meu pai fez uma cena de ciúmes.
Depois mexeu os cordelinhos junto dos irmãos e do pai de quem era amigo e companheiro de trabalho.

Convenceram-na. Ou o Zé Ganso, que conheciam desde miúdo e até tinha um pé de meia para quando casasse, ou mais ninguém. O outro não o conheciam de lado nenhum.

Ela argumentou que o Zé bebia às vezes, e andava com mulheres da vida.

É sinal que não é maricas, foi a resposta.
Até a mãe lhe disse: – Filha quando casar ele assenta.