A Procissão

Chegou o dia. Era dia da procissão do Senhor dos Passos. Os sinos tocavam, cheirava a incenso e pétalas de flores. As janelas enfeitadas com lindas colchas emolduravam as ruas por onde a procissão ia passar.

Eu e o meu Pai íamos participar pela primeira vez numa procissão. Ele, de Opa vermelha com a cruz de Cristo ia pegar no andor do Senhor dos Passos. Eu ia a acompanhar a procissão como anjinho com um vestido de tafetá branco, peitilho com folhos, rematado por uma faixa de cetim azul. Nos ombros umas asas de penas brancas presas ao vestido por elásticos davam-me um ar celestial. Ao meu lado, um menino vestido de São Roque protestava:

-Oh mãeeee, eu não quero ir vestido de “serrote”

O andor, com Jesus Cristo vergado sobre o peso da enorme cruz, devia ser pesadíssimo, pois era carregado por 8 homens fortes (incluindo o meu Pai)

A Minha Mãe, obreira daquela nossa forçada manifestação religiosa estava muito satisfeita. Pudera, não era ela que carregava o andor.

Às tantas, o Padre nunca mais se calava e o São Roque já cansado deixou cair o cajado. O meu Pai muito vermelho já bufava por todo o lado e a mim, começaram-me a escorregar as asas. Foi quando me pus a gritar:

-Oh mãe… quero fazer chichi!!!

À noite é que foram elas. O ombro do meu Pai estava roxo e em carne viva. Ao ver-se ao espelho ele gritou-lhe:

-Granda puta… já viste o que fizeste? tu e o padre precisavam era de um enxerto de porrada.

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“Cuecas de Gola Alta”

Dizia-me a minha avó, que quando se casou, não trouxe cuecas no enxoval.

É que não era hábito essa peça de roupa nas mulheres de Alvor, nos primórdios de 1900.  ” Ver a mulher e a sardinha quer-se pequenina.

À minha pergunta, então como é que as mulheres desse tempo faziam xixi, ela respondeu-me que as saias eram compridas e tinham algibeiras.

Por debaixo da saia, vestiam um saiote que tinha duas aberturas até à altura das algibeiras da saia.
Então, com as mãos dentro dos bolsos das saias, arredavam os saiotes interiores, abriam as pernas e depois era uma questão de pontaria.
Normalmente mijavam de pé.

As minhas cuecas eram de algodão e vinham em caixinhas de seis, duas azuis, duas rosas e duas brancas.

Uma das caixas era um numero acima, para vestir quando as outras já estivessem mais usadas, mas eu não conseguia ter coisas por estrear!!!

 

 

 

Tótó o cão marinheiro

Tótó era um cão,  arraçado de cão de água. O seu pêlo era amarelo e comprido, mas tosquiavam-no à leão deixando uma melena de pêlo na ponta da cauda.

Tótó era corajoso,  inteligente, meigo e muito amigo.

Na traineira “Isabel Lourenço“, era mais um camarada. Ganhava como qualquer companheiro,  meia parte do peixe, que depois era vendido, e trocado por carne e ossos para a sua alimentação.

Mas não pensem que não merecia o que ganhava; Totó estava sempre atento e na altura da recolha das redes, se algum peixe se escapava, se algum cabo caía ao mar, ele mergulhava para o recuperar.

Dizia o Avô que quando pescavam atum no Algarve,  ele às vezes  ficava agitado e gania, e quando eles olhavam com atenção para o horizonte detectavam ao longe uma barbatana de tubarão.

O Totó tinha sete anos quando o Avô vendeu a “Isabel Lourenço“, por isso veio para casa viver connosco, mas isso é outro fragmento…

 

 

A Máquina do Tempo

Todos os anos por volta de Julho e até ao fim de Agosto, o barco  “Pai e Filhos”, ia pescar para o Algarve. Uma semana depois seguíamos nós, isto é… o Avô, a Avó e eu. Viajávamos de comboio, que saía da estação do Barreiro.

Na altura 1950 mais ou menos, fazer aquela viagem era para mim  algo sobrenatural. Eu tinha medo, medo e curiosidade, daquela máquina assombrosa, que chegava a resfolegar, silvando, cheirando a ferro em brasa, e que exigia ser constantemente alimentada. Dois seres afadigavam-se nessa missão. Vestiam camisolas cavadas, enegrecidas  como eles,  pela fuligem e pelo fumo.

Quando o chefe da estação apitava, o mostro respondia com um enorme silvo. Eu sentia-me dentro de uma máquina do tempo, que se deslocava devagarinho e começava a falar cada vez mais depressa, conforme ganhava velocidade… Pouca-Terra … Pouca -Terra.. Poucaterra..poucaterrra.

Depois a planície, o cheiro a melão maduro, a figos e a amêndoas, as passagens pelos túneis a que antecedia o silvo estridente da coisa, logo seguido do acender  das luzes, em que o comboio se enchia de fuligem e fumo.

Nessa altura, as pessoas viajavam com as coisas mais incríveis. Lembro-me de uma senhora que levava duas galinhas dentro de uma cesta, a certa altura uma das bichas soltou-se, e era vê-la a correr pelo corredor, voando e cacarejando.

Chegados a Tunes, tínhamos que mudar de comboio, este mais moderno que nos levava até Faro. Contudo era viagem para seis ou sete horas.

Depois era desfrutar o Sol e as belas praias de quentes águas.

Comboio a vapor a entrar num tunel
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A “Olhos de Boi”

Ás vezes o peixe ainda chegava vivo lá a casa. Sardinhas e carapaus, eram o principal da pesca, mas na rede vinham sempre três ou quatro linguados, duas ou três pescadas, alguns robalos etc. Para casa vinha sempre o que de melhor se pescara.

Nós comíamos bastante peixe, mas não conseguíamos consumi-lo todo, por isso o Avô mandava distribui-lo pelos vizinhos, que normalmente apreciavam o gesto.

Em frente da nossa casa, num prédio com dois andares, morava no R/C um casal com um filho. Eram gente muito pacata e educada. A senhora era alta e magra, com cabelos pretos com uns olhos muito grandes e pestanudos.

As minhas tias chamavam-lhe a “Olhos de Boi”. Toda a minha vida eu ouvi, quando se referiam à vizinha, chamarem-lhe a “Olhos de Boi”.

Acontece que o Avô me perguntou se eu queria ir levar o peixe às vizinhas, e eu toda contente aceitei.

A coisa não me correu muito bem, enganei-me e toquei para o primeiro andar:
 
– Quem é ?
– É da casa da D. Olhos de Boi?
– Toca no outro botão menina!

Assim fiz, e voltei a perguntar:
 
– É da casa da D. Olhos de Boi?
– A senhora abriu a porta, olhou para mim com os olhos muito abertos e pestanejou três vezes…
– Assustei-me,  larguei a cesta com o peixe , e corri espavorida para casa.

Permanente…Que maldade!!!

Por volta dos anos 50, nas revistas da época tipo “Século Ilustrado”, as crianças eram mostradas em fotografias de estúdio, em poses ensaiadas; irrepreensivelmente vestidas e penteadas.

Crianças ranhosas e desgrenhadas “Jamai”.

Crianças pobres só eram mostradas em conjunto, por exemplo:

A Exmª.  senhora do presidente da republica, General Craveiro Lopes, deslocou-se à abertura da Colónia Balnear Infantil o Século.

Tinha pouco mais de dois anos, quando as tias me levaram à cabeleireira, para me fazer uma permanente.

Disseram que me portei muito mal, e que chorei muito.

O Avô quando viu zangou-se, e proibiu que o voltassem a fazer.

Aqui está o resultado.

A Mulher e a Sardinha quer-se pequenina.

O meu avô avaliava as mulheres como se de peixe se tratasse.

Eu era a Pescadinha; uma mulher feia e metediça era uma ” Uge” (raia gigante com ferrão na ponta do rabo); uma mulher muito bem feita, era “Pescada do Alto”; Uma mulher com boca grande era “uma boca de Charroco” e com olhos grandes era uma “Boga”. Havia ainda “a Cavalona” que era uma mulher atiradiça.

Mas a personificação da mulher perfeita era a sardinha, que se queria pequenina e saltitante.

Maria Isabel era uma rapariguinha loira, com olhos cor do mar em dia de sol. Baixinha e muito remexida, era a filha mais nova do Senhor Costa.
Foi amor à primeira vista, ela parecia uma sardinhita prateada.

– Queres casar comigo Maria?

Casou com ela, e deixou-a grávida, a viver na casa da mãe.

Chegado a Lisboa, arrendou uma casa na rua das Hortas, no número dezoito, em Pedrouços, perto da doca com vista para a Torre de Belém.

Foi nessa casa Que nasceu Susana, a primeira filha do casal. A tia “Xana”.

Avó vou brincar às escondidas

Avó vou brincar às escondidas com o tio “Pico” para a cave.

– Oh filha! – ainda agora a Maria Zé te vestiu de lavado.

A cave está suja e cheira mal. Além disso vais maçar o Mário, ele está a pôr as etiquetas no vinho. Foi o avô quem lhe pediu.

Vó… eu porto-me bem. – Bom vai lá, mas faz o que o Mário disser.

O “Pico” ficou todo contente quando eu apareci. Pegou-me ao colo e deitou-me em cima de um monte alto de redes da pesca e disse para eu ficar quietinha. Levantou o meu vestido até ao pescoço, e disse que eu tinha que olhar sempre para cima, porque se eu olha-se para baixo perdia o jogo.

O tio “Pico” não sabia jogar às escondidas.

O caixão

Todos os brinquedos estavam no meu quarto, menos a Zázá que continuava a viver no quarto azul. Sempre que eu queria brincar com ela tinha que pedir a alguém que me abrisse a porta para eu poder brincar.

Num desses dias, abriram-me a porta e deixaram-me ficar lá sozinha.

A minha atenção foi atraída para uma enorme caixa de bombons com uma pintura muito bonita na tampa. Julguei ter descoberto o porquê daquela porta estar sempre fechada, mas não.

A caixa de bombons estava cheia de fotografias e eu sentada no chão ali estive entretida a vê-las uma a uma.

Numa das fotografias estava deitada dentro de um caixão, uma senhora alta e magrinha,vestida de preto, mas com um lenço branco que lhe apertava os maxilares.

A avó estava na cozinha a fazer o almoço, quando eu apareci com ar comprometido. Escondida atrás das costas estava a fotografia.
– O que foi menina?
– Já não queres brincar mais?
– O que é isto avó?
– Aiii… Aiii…. Jesus Senhor, que criança atrevida! – Quem lhe manda mexer onde não é chamada.

A avó limpou as mãos ao avental, sentou-se e pegando na fotografia disse:
– Meu Deus, tantos anos já passaram.
– Esta senhora era a tua bisavó, mãe do teu avô.

A fotografia

Pescadinha & Zazá

Vestiram-me um vestido azul de veludo com gola branca, bordada com bolinhas azuis, vermelhas e amarelas. Em baixo, na saia, losangos de gorgorão nas mesmas cores da gola, enfeitavam um circulo branco. Atrás das costas um laço azul compunha o vestido. Nos pés meias de renda e os meus sapatos vermelhos. Prendendo os cabelos loiros, um farfalhudo laçarote.

Quando entrei no eléctrico para Lisboa, com a Zázá ao colo causei sensação. Parecia saída de um postal ilustrado!

As pessoas interagiam comigo e eu muito orgulhosa mostrava-lhes as habilidades da Zázá.

Um senhor fez-me uma festa e disse-me: – Não sei qual é mais bonita, se a dona se a boneca.

Para a posteridade ficou a fotografia.