Cavalgando o Vento

O tio “Pico” comprou uma mota, uma Norton, preta e dourada. A mota era intimidantemente linda.

Fui pedir ao Avô para me deixar ir passear na mota nova do tio “Pico”.

O Avô não gostou muito da ideia, disse que coisas com duas rodas, não eram de fiar; e que se aquilo caísse o para-choques seriamos nós e não deixou. Mas o Avô foi para o mar, a avó foi ao cabeleireiro e o tio “Pico” disse que íamos só dar uma pequena voltinha para ver se eu gostava.

Primeiro assustei-me com o roncar do motor, depois com as curvas, em que parecia que ia cair a qualquer momento, mas já na Marginal, quando começamos a ganhar velocidade, o medo passou e senti-me “Pégaso” cavalgando o vento.

Chegados à praia do Guincho, o tio “Pico” disse que se eu quisesse podia despir a roupa e ir brincar perto da água, ou até tomar banho, pois não estava ninguém a ver e também não era preciso ninguém saber, porque ele não dizia nada à Avó.

Nesta altura eu devia estar quase a fazer os seis anos porque ainda não andava na escola, mas algo me disse que não o devia fazer.

Então ele pediu-me para lhe mostrar as maminhas, para ver se já estavam a crescer. Contrariada levantei a blusinha e ele agarrou-me e beijou-me o peito sofregamente. Assustada… empurrei-o com força e disse-lhe:

– Tá quieto, quero ir para casa, vou dizer ao Avô.

Tás doida miúda?… O que é que queres dizer ao Avô?

Olha que nunca mais vais passear comigo!!!

Não me arranjes sarilhos!!!

Vamos embora!

Apesar do “Pico” ficar esquisito, eu gostei muito de andar na mota nova.

Fábulas e Lendas

Gostava muito das fábulas e das lendas que a minha Avó me contava, sempre que eu a questionava em busca de respostas.

Nessa manhã os pescadores trouxeram um grande “PEIXE-GALO”, alguns linguados e uns quantos salmonetes.

Eu nunca tinha visto um peixe-galo, tampouco um salmonete ou um linguado e estranhei o contraste entre eles.

Os salmonetes eram belos, de cor rosa, com tons de ouro e escamas que pareciam lantejoulas.

Os linguados pareciam ter sido atropelados, tinham os olhos do mesmo lado, o corpo achatado, e a boca ao lado… que peixe tão feio!!!

O “PEIXE-GALO”, chamou a minha atenção por ter uma dedada marcada de cada lado do corpo.

Depois de me mostrar os peixes, a avó pegou no peixe galo e começou a contar:
– Esta história aconteceu quando Jesus andava a pregar o Evangelho com os seus companheiros e Pedro lhe disse que estavam sem comida e sem dinheiro.

E Jesus disse:
– Pedro, se assim é vamos pescar.

Quando se fizeram ao mar e Pedro se preparava para lançar as redes, apareceu junto ao barco um grande peixe-galo com algo brilhante na boca. Jesus baixou-se para apanhar o peixe e tirou-lhe da boca uma bela moeda de ouro que deu a Pedro.
Conta a lenda que estas marcas no corpo do peixe, são as impressões digitais de Jesus, que ficaram para sempre marcadas neste saboroso peixe.

Avó e o linguado, porque é que ele é tão feio e o salmonete é tão bonito?

E a avó contou:
– Conta a lenda, que o linguado ficava muito incomodado, sempre que um belo salmonete se passeava perto do sitio onde ele se encontrava. Um dia o salmonete chegou mais tarde e educadamente perguntou-lhe:
– Oh linguado… a maré esta cheia ou vazia?

Malcriado, o linguado arremedou o salmonete e pondo a boca ao lado disse:
– Oh linguadoamarétácheiaouvazia!!!

E por castigo divino ficou assim para sempre.

 

O grande desgosto

O ” quarto azul ” voltou a ter protagonismo, é que a tia ” Licas ” ia casar.
Conjuntos de cozinha, serviços de jantar, conjuntos de talheres, vassouras, lençóis, mantas, toalhas… o quarto parecia um armazém. Eu lá ia com elas, a Avó e a tia Licas, às compras a Lisboa. Íamos ao Bráz & Brás, aos Grandes Armazéns do Chiado, ao Ramiro & Leão, que tinha um elevador muito vistoso.

Depois das compras íamos lanchar à Confeitaria Nacional, e eu tinha direito a escolher um ou dois brinquedos na Quermesse de Paris.

À tardinha, o ” Preto,” era como eu chamava ao noivo da tia, ia buscar-nos no seu ” Morris ” às arcadas da Praça do Comércio, para nos levar para casa.

O dia do casamento estava próximo. Já tinham casa alugada, iam morar em Carnaxide, num primeiro andar com quintal, mesmo ao lado dos Bombeiros.

O quintal era muito agradável, dividido em seis talhões, três de cada lado e ao meio um poço com um arco e roldana, de onde se tirava uma água tão fresca, que embaciava o copo. Para mim o único senão era ser junto aos Bombeiros, que sempre ao meio dia e  quando havia fogo, tocavam a sirene, que quase nos rebentava os tímpanos.

O dia do casamento da minha tia Licas, foi o dia do meu primeiro grande desgosto.

Eu tinha seis anos, e ela foi a única pessoa que viu o meu sofrimento. Olhou para mim com pena, e com as suas mãos macias afastou as lágrimas que me corriam pelo rosto.

-Não chores, vais a casa da tia quando quiseres … e dormes lá… prometo!!!

Nessa noite, sozinha no meu quarto eu chorei muito, e senti pela primeira vez o peso da solidão.

A Banhos na Pancada

Ficava a duzentos e cinquenta metros de altitude, na encosta de Monchique, a sete quilómetro da Aldeia. A casa feita de granito e xisto, era onde vivia o  senhor Amílcar. Ver “O Mestre licoreiro” e o “Alquimista“.

Ao lado havia um casebre, com um grande alambique em cobre, onde o senhor Amílcar destilava a aguardente de medronho e fazia os seus licores.

Em frente da casa tinha uma horta e a perder de vista ,um pomar de frutas que a  tia Ana cuidava com desvelo.

Na cavalariça, estava um macho chamado “Ruivo”, que atrelavam a uma carroça, quando era preciso ir à aldeia vender os artigos que fabricavam.

Não faltava nada naquele monte. A mesa estava sempre posta com presunto de porco preto, chouriças, queijo fresco, mel, muita fruta e o pão que a Ti Ana cozia no forno de lenha.

As galinhas andavam à solta, e eu dava-lhes pão, milho e couves.

Tinham oito ovelhas,  cada uma com seu nome,  que pastavam à vontade e se as chamássemos vinham comer à nossa mão.

Também havia uma vaca malhada chamada “Estrelinha”, que dava um leite grosso e gostoso cheio de nata.

Era aqui que nós passávamos a última semana, para o Avô fazer a sua cura  das águas termais à bronquite e a Avó aos rins e ao reumático.

O senhor Amílcar nasceu na serra e conheci-a como à palma das suas mãos. Ele sabia onde nasciam as águas curativas.

Só fui com eles uma única vez. Pelo caminho ia-nos mostrando árvores, ervas e plantas medicinais. Lembro-me de termos parado num riacho e de ele ter apanhado para mim uma linda borboleta, mas o cansaço foi tal que quando chegamos a casa, eu só acordei no outro dia.

A cascata de água quente e cristalina de onde se banhavam e bebiam a água estava dentro de uma gruta em plena serra, e o barulho da água era tão estrondoso que os locais lhe chamavam de “Pancada”.

A verdade é que quando faziam este tratamento, passavam um santo inverno.

Eu ficava com a Ti Ana que assim que os apanhava longe, ia ao alambique e enchia um copo de medronho acabado de destilar, e depois de um grande Aaaaaah!!!!! Dizia:

Sabe uma coisa menina… este ano a aguardente está mais fraca.