O segredo

Levei muito tempo afastada do fascínio do alçapão, até que um dia o avô foi lá a cima buscar uma bússola para um dos barcos, e esqueceu a chave no cadeado.

A avó tinha ido ao mercado , as tias não estavam e eu parece que ouvia o chamado; – Vem… vem ver, é a tua oportunidade. Vá lá… não tenhas medo.

Com as pernas a tremer, subi o primeiro degrau, as minhas pernas eram curtas e o espaço entre as escadas era muito alto.

A tremer e a suar, consegui chegar ao ultimo degrau. Depois tive que me içar para conseguir subir.

Finalmente… que sensação. As traves mestras que sustinham o telhado estavam cobertas de teias de aranha, e apenas a luz ténue de duas telhas brancas deixavam vislumbrar os objectos. Espalhados pelo chão estavam cordas de prender os barcos, uma ancora enferrujada, redes, um barco de borracha e ao fundo cheio de pó um velho baú. Seria ali a casa das ratazanas?

Cheia de receio, mas com enorme curiosidade abri o baú. Dentro cuidadosamente embrulhada em papel manteiga estava uma arma e caixas de munições, Assustei-me. Soube instintivamente que aquilo servia para matar.

O alçapão

Ao lado da cozinha,havia uma despensa onde eram guardados os víveres da casa. Mas olhando para cima existia uma abertura no tecto que estava fechada a cadeado.
 
– O que é aquilo avó?

Aquilo é um alçapão, onde moram enormes ratazanas, que te vão comer as mãos se alguma vez tentares lá entrar sem que eu saiba.
 
– Como ela diria… cruzes, credo, que medo.

O desgosto da pescadinha

Os meus lindos vestidos tinham desaparecido dos seus cabides. As meias de renda branca e os sapatos novos vermelhos, não estavam mais dentro da caixa e eu senti desmoronar-se todo o meu universo.

Quando a avó chegou do cabeleireiro, eu não lhe disse nada do que me ia na alma, mas sentei-me nos degraus da porta principal à espera que o avô chegasse.

Olha a pescadinha … estava à espera do avô?
 
– Corri para ele de braços estendidos e chorei o meu desgosto em altos berros no seu colo.

Primeiro apareceu a avó muito atarantada, antevendo uma queda, um braço partido, a ferroada de uma abelha e gritava: – Ai… Aiiii… meu Jesus, Virgem Maria me acuda, o que aconteceu? -Valha-me Deus.

As tias vieram a seguir, tentando compor a situação, mas eu não lhes dei chance, agarrada ao pescoço do meu avô, enchendo-o de ranho e baba gritei; – Foram as cabras… roubaram os meus vestidos todos. E a soluçar; – já nem tenho os sapatinhos vermelhos elas também os levaram.

Nessa tarde fui a Lisboa com o avô comprar roupa nova, e fui eu que a escolhi.

As Pugilistas

Hoje acordei com as tias à pancada no meu quarto. Puxavam os cabelos uma à outra, batiam-se e gritavam agarradas aos meus vestidos.

Este fui eu que o fiz… e comprei-o com o meu dinheiro, a menina ainda não o tinha estreado e tu saíste com ela como se fosses tu que o tivesses feito. Isso é que era bom… agora não volta a acontecer porque eu vou guardá-los no meu quarto.

E tu minha cabra, julgas que eu não sei que levas a menina para encobrires as fodas que vais dar ao domingo com o teu namorado. A miúda chega ao carro e adormece; – e tu estás como queres.

Mas deixa que eu vou abrir os olhos ao pai! – Ai se vou.

Quando me viram sentada na cama a olhar para elas disseram-me: – Isto não se conta à avó, ouviste… senão nunca mais te levamos a passear.

A tia Adelina e o Pico

A tia Adele era uma mulher muito linda. Era alta e loira, peitos e ancas proporcionados. Os seus olhos de um verde água, destacavam-se no seu rosto.

Tirou o curso de professora primária mas nunca exerceu. O noivo não queria… isto para grande frustração do meu avô, que não lhe achava muita graça.

Mário o noivo, vivia com a mãe viúva e era filho único. Já namorava a minha tia à mais de sete anos e casamento, nada.

Era da Legião Portuguesa e químico de profissão. Eu era tão pequena quando o conheci que ainda não sabia dizer bem o seu nome, mas como a barba dele me incomodava, quando o via chamava-lhe « PICO».

Os tios

O tio Victor vivia no quarto verde, e tinha debaixo da cama uma mala de madeira fechada com um cadeado. Ouvi dizer muitas vezes que ele era nervoso e enfezado, porque foi o fim do tacho… o rapar do tacho. Além disso teve tuberculose e lá em casa os irmãos a mãe e até o pai tinham para com ele uma benevolência condescendente. O rapaz gostava de noitadas, e dormia de dia. A tosse seca e persistente não o largava.

Ouvi uma vez o avô dizer á avó que tinha que se arranjar algo para ele fazer; – mas o quê? – respondeu-lhe ela. O rapaz é fraco. Ele é mas é um grande calão, respondeu-lhe ele.

O tio Victor tinha sempre dinheiro. Quem lho dava era a avó sem o avô saber e o avô também lhe dava uma semanada que ele ganhava e perdia ao jogo.

A Zázá

Acordei ao som de gemidos. Os sons vinham do quarto dos avós… parecia uma luta. Devagarinho empurrei a porta e espreitei até aquilo acabar.

Gostaste? – Ai homem, que me atormentas… gostei.

Saí dali sem que me tivessem visto e dirigi-me ao quarto azul. Tirei de dentro da caixa a Zázá, sentei-me numa cadeira e apertei-a entre as pernas com tanta força que lhe parti as pernas.

A Zázá

No dia do meu terceiro aniversário corria o ano de l950, Era inverno e estava frio. A avó tinha ido com as tias aos Armazéns do Chiado comprar a minha prenda. Em casa ficou o tio Victor com a incumbência de me dar o almoço. A tia Licas disse: – lá para o meio dia coze a pescada para a menina. Depois veio o amigo dele comeram a pescada e falaram que a namorada do tio Victor mijava ossos. Então ele fez para mim massa pevide temperada com muita banha e deu-ma à colherada. Depois senti-me muito mal e vomitei. Acho que ao fim de uns dias ainda tinha massa a sair-me do nariz.

A avó e as tias chegaram á noite com uma caixa enorme, mas eu sentia-me tao mal que nem liguei, por isso fecharam-na á chave no quarto azul.