A carta anónima

A carta dizia assim:

Senhor José se quer ter filha por mais uns anos, trate dela.
O marido tem tuberculose e nunca lhe disse nada.

Assinado
Uma amiga.

 

Diz quem viu, que o meu avô correu desesperado até à construtora para falar com o Jorge, que lhe disse que sim, que por tanto a amar e não querer perde-la não teve coragem de lhe dizer a verdade.

Não havia tempo a perder. Foi a casa da filha, contou-lhe a verdade.

Pediu-lhe que fizesse as malas, era para o bem dela e da criança.

E o Jorge pai?
– Não gasto um tostão com esse bandido.

A partir daí ela nunca mais viu o Jorge.

Felicidade

Susana&Jorge

Eram felizes!!!

Foram viver para a Junqueira. A casa era alegre, cheia de sol, e tinha uma varanda com vasos de sardinheiras vermelhas.

Amavam-se tanto!!!

E quando ela engravidou comentou com a minha mãe:

– Rosa, sou tão feliz… tão feliz!!!

Susana & Jorge

Aos vinte anos Susana conheceu Jorge. Trabalhava numa firma de construção. Era traçador.

Ele ganhava bem para a época, e era da idade dela, por isso o meu Avô embora o achasse muito enfezado e sempre com uma tosse embirrante, não teve como dizer que não.

Namoraram cinco anos.

Decorriam tempos difíceis, época da segunda guerra mundial.

Foi quando compraram a moradia de Algés e lá se instalaram.

E foi na antiga igreja de Algés que o meu Avô levou ao altar a sua amada filha Susana.

 

Susana & Avô

Susana

Tios & Tias

 

Foi na casa da rua das Hortas em Pedrouços, que o meu Avô cimentou a sua vida.

Foi lá que comprou o primeiro barco, e foi lá que lhe nasceram os filhos… três rapazes e três raparigas.

Susana, a rapariga mais velha foi para ele uma mais valia.

Era o seu aí Jesus.

Quando chegava a casa vindo do mar, era a ela que entregava o dinheiro. Era a administradora.

Para além de obediente e boa dona de casa, Susana era uma excelente modista. Era ela quem fazia os fatos e vestidos de toda a família, e também de minha mãe que foi a sua melhor amiga.

A minha Avó já dava sinais de não estar a aguentar a pressão. A depressão começava a instalar-se.

Permanente…Que maldade!!!

Por volta dos anos 50, nas revistas da época tipo “Século Ilustrado”, as crianças eram mostradas em fotografias de estúdio, em poses ensaiadas; irrepreensivelmente vestidas e penteadas.

Crianças ranhosas e desgrenhadas “Jamai”.

Crianças pobres só eram mostradas em conjunto, por exemplo:

A Exmª.  senhora do presidente da republica, General Craveiro Lopes, deslocou-se à abertura da Colónia Balnear Infantil o Século.

Tinha pouco mais de dois anos, quando as tias me levaram à cabeleireira, para me fazer uma permanente.

Disseram que me portei muito mal, e que chorei muito.

O Avô quando viu zangou-se, e proibiu que o voltassem a fazer.

Aqui está o resultado.

A Ida à praia

 

Nos fins dos anos 20 a praia de Algés era muito concorrida.

Diversas barraquinhas de madeira pintadas de cores vivas, animavam a praia.

Alugavam-se ao dia, e serviam para proteger do sol e para as pessoas vestirem os seus fatos de banho.

Quem não tinha fato de banho, levava uma muda de roupa mais usada, e tomava banho vestida.

Os fatos de banho não podiam ter menos de quinze centímetros acima do joelho.

Na foto: em baixo a tia Licas, à esquerda a minha mãe à direita a tia Xana e em cima a tia Adelina.

O homem que matou o “Vendaval”

As rajadas de vento uivavam por entre os mastros dos barcos. Os relâmpagos e a chuva fustigavam tudo à sua volta, que o tempo era de vendaval.

À cinco dias que os barcos não saíam para a pesca. As lotas não tinham peixe e os homens desesperavam.

Apenas quatro homens compareceram ao chamado do meu avô.
 
– Qué do Chalica?
– Não veio, diz que não vai para o mar com este tempo, tem filhos para criar.
– Vai buscar o Américo, vamos sair mesmo assim. De madrugada isto levanta.

A viagem foi terrivel, tocada a chuva e vento, e onde a fúria das vagas a cada investida, pareciam quebrar a quilha da pequena embarcação.

Chegados a Sesimbra, não havia condições para a pesca, por isso fundearam na praia.

Ás três da manhã a tempestade amainou.
 
– Acordem!!! cambada de calões; – Toca a trabalhar. Vamos pescar para o largo.

Estavam lá na hora certa, na hora em que um descontraído cardume de carapaus,  resolveu explorar as redes do “Marcelina da Costa”.

Foram os únicos na lota,  e o peixe valeu cinco vezes mais.

Viva o Mestre Zé, o homem que matou o vendaval.

A preta dos amendoins.

Quem estava sentado nas esplanadas de Algés, sabia logo que ela tinha chegado.

As crianças em bando, corriam para ela e gritavam a plenos pulmões:

-Preta da Guiné lava a cara com café!!!
-Preta da Guiné lava a cara com café!!!

Ela gostava da recepção;

-Baixava-se, falava com elas, fazia-lhes festas e dava a cada criança um gordo amendoim.

Mendim-torradimmmm…. Olhá-mendim-torradimmmm:

-Pssst, quanto custa?
-Cada copo cinco estões. Bem aviado.

Era imponente, muito alta, forte, dentes muito brancos e vestes a fazer lembrar as suas longínquas origens.Na cabeça um turbante compunha a figura.
Era a “Preta dos amendoins”.

A Mulher e a Sardinha quer-se pequenina.

O meu avô avaliava as mulheres como se de peixe se tratasse.

Eu era a Pescadinha; uma mulher feia e metediça era uma ” Uge” (raia gigante com ferrão na ponta do rabo); uma mulher muito bem feita, era “Pescada do Alto”; Uma mulher com boca grande era “uma boca de Charroco” e com olhos grandes era uma “Boga”. Havia ainda “a Cavalona” que era uma mulher atiradiça.

Mas a personificação da mulher perfeita era a sardinha, que se queria pequenina e saltitante.

Maria Isabel era uma rapariguinha loira, com olhos cor do mar em dia de sol. Baixinha e muito remexida, era a filha mais nova do Senhor Costa.
Foi amor à primeira vista, ela parecia uma sardinhita prateada.

– Queres casar comigo Maria?

Casou com ela, e deixou-a grávida, a viver na casa da mãe.

Chegado a Lisboa, arrendou uma casa na rua das Hortas, no número dezoito, em Pedrouços, perto da doca com vista para a Torre de Belém.

Foi nessa casa Que nasceu Susana, a primeira filha do casal. A tia “Xana”.

O “Salto”

Foi daqui do sítio de Alvôr, no Algarve, que o meu avô partiu para Lisboa.

Em Alvôr deixou a mãe e a pobreza.

Não se passava fome, por que quem vive com o mar a beijar-lhe os pés tem sempre algo para comer. Mas na altura Alvôr era uma terra sem futuro. Havia o mar e a pobreza, muita pobreza.

Tinha treze anos, quando veio para Lisboa num barco de pesca. Só voltou aos dezoito anos para rever a mãe, que encontrou muito debilitada. Com o dinheiro amealhado comprou-lhe a casa onde vivia e deixou dinheiro na venda do Senhor Costa para que nada lhe faltasse.