O grande desgosto

O ” quarto azul ” voltou a ter protagonismo, é que a tia ” Licas ” ia casar.
Conjuntos de cozinha, serviços de jantar, conjuntos de talheres, vassouras, lençóis, mantas, toalhas… o quarto parecia um armazém. Eu lá ia com elas, a Avó e a tia Licas, às compras a Lisboa. Íamos ao Bráz & Brás, aos Grandes Armazéns do Chiado, ao Ramiro & Leão, que tinha um elevador muito vistoso.

Depois das compras íamos lanchar à Confeitaria Nacional, e eu tinha direito a escolher um ou dois brinquedos na Quermesse de Paris.

À tardinha, o ” Preto,” era como eu chamava ao noivo da tia, ia buscar-nos no seu ” Morris ” às arcadas da Praça do Comércio, para nos levar para casa.

O dia do casamento estava próximo. Já tinham casa alugada, iam morar em Carnaxide, num primeiro andar com quintal, mesmo ao lado dos Bombeiros.

O quintal era muito agradável, dividido em seis talhões, três de cada lado e ao meio um poço com um arco e roldana, de onde se tirava uma água tão fresca, que embaciava o copo. Para mim o único senão era ser junto aos Bombeiros, que sempre ao meio dia e  quando havia fogo, tocavam a sirene, que quase nos rebentava os tímpanos.

O dia do casamento da minha tia Licas, foi o dia do meu primeiro grande desgosto.

Eu tinha seis anos, e ela foi a única pessoa que viu o meu sofrimento. Olhou para mim com pena, e com as suas mãos macias afastou as lágrimas que me corriam pelo rosto.

-Não chores, vais a casa da tia quando quiseres … e dormes lá… prometo!!!

Nessa noite, sozinha no meu quarto eu chorei muito, e senti pela primeira vez o peso da solidão.

O Pagador de Promessas

Sentados nos bancos de jardim, em frente à igreja de Alvôr, ouvia atentamente o meu avô:

– Sabes quando isto que te vou contar aconteceu, tu ainda não tinhas nascido.

A Europa encontrava-se em guerra.  Portugal era um país neutro, mas a vida era muito difícil, havia racionamento de bens, como o açucar , o café, a manteiga, os cereais, havia falta de quase tudo. Nessa altura o avô trabalhava mais do que o costume para que lá em casa nada faltasse

Então com um tempo de vendaval, o avô resolveu sair para a pesca, esperando que mais uma vez tivesse sorte e apanhasse o peixe que mais ninguém se atrevera a arriscar.

Mas nesse dia a coisa correu mal.

Quando saímos a barra o mar começou a ficar medonho. As vagas eram tão altas, que quase partiam pelo meio a ” Isabel Lourenço“.

O vento e as vagas varriam o convés de uma ponta à outra.

Era já madrugada e aquilo não havia meio de parar.

Eu mantinha-me na casa do leme quando um camarada me chamou:

Venha aqui mestre Zé!

Quando cheguei à casa da máquina os camaradas choravam:

– Mestre Zé, vamos morrer todos… o barco não aguenta isto por muito mais tempo!!!

– Venha… junte-se a nós, vamos rezar ao Senhor Jesus de Alvôr.

– Eu não me acredito nessas tretas!

– Nós acreditamos por si!

– Por favor mestre Zé… acompanhe-nos nesta promessa.

E minha filha, eu vi… cinco homens valentes… chorando como crianças… implorando pela sua fé aos céus que lhes valesse , que acalmasse as águas revoltas e salvasse as suas vidas.

Prometeram que encheriam o altar do Senhor Jesus de velas, de cada vez que visitassem Alvôr.

E depois Avô o que aconteceu?

Depois o dia clareou, o vento amainou e o ” Isabel Lourenço ” voltou são e salvo ao ponto de partida.

Por isso aqui estou eu e tu a honra-los na sua promessa.

 

Pescadinha & Avô na Praia de Alvôr

 Eu e o Avô na Praia da Rocha (Portimão) em 1955

 

A “Olhos de Boi”

Ás vezes o peixe ainda chegava vivo lá a casa. Sardinhas e carapaus, eram o principal da pesca, mas na rede vinham sempre três ou quatro linguados, duas ou três pescadas, alguns robalos etc. Para casa vinha sempre o que de melhor se pescara.

Nós comíamos bastante peixe, mas não conseguíamos consumi-lo todo, por isso o Avô mandava distribui-lo pelos vizinhos, que normalmente apreciavam o gesto.

Em frente da nossa casa, num prédio com dois andares, morava no R/C um casal com um filho. Eram gente muito pacata e educada. A senhora era alta e magra, com cabelos pretos com uns olhos muito grandes e pestanudos.

As minhas tias chamavam-lhe a “Olhos de Boi”. Toda a minha vida eu ouvi, quando se referiam à vizinha, chamarem-lhe a “Olhos de Boi”.

Acontece que o Avô me perguntou se eu queria ir levar o peixe às vizinhas, e eu toda contente aceitei.

A coisa não me correu muito bem, enganei-me e toquei para o primeiro andar:
 
– Quem é ?
– É da casa da D. Olhos de Boi?
– Toca no outro botão menina!

Assim fiz, e voltei a perguntar:
 
– É da casa da D. Olhos de Boi?
– A senhora abriu a porta, olhou para mim com os olhos muito abertos e pestanejou três vezes…
– Assustei-me,  larguei a cesta com o peixe , e corri espavorida para casa.

Ala… Arriba!

A “ISABEL LOURENÇO”, era uma traineira da pesca da sardinha, cavala e carapau. Tinha pouco mais de doze metros.

As traineiras pescam em cerco, isto é; cercam o peixe que depois de entrar na rede já não pode sair.

As zonas onde pescavam eram: – Setúbal, Ericeira, Peniche, Cabo Espichel, etc.

O “PAI E FILHOS”, era o barco de apoio, chamado de “enviada”. Mais pequeno, também pescava, mas a função principal era recolher o peixe que já não cabia na traineira.

Agora existem guinchos, radares e aladores que apoiam os pescadores. Naquele tempo, não havia desses apoios, e era ao som do cantador, que à força de braços os homens da enviada e da traineira içavam para o convés as redes carregadas de peixe.

– Ala… Ala… Ala… Arribaaaa!!!
– Ala… Ala… Ala… Arribaaaa!!!

Mãos calejadas que mais parecem cabedal, lábios gretados, pele queimada pelo sol, recolhem o peixe para os porões e rumam a todo o gás para a lota; com a paixão pelo mar gravada a fogo na alma.