A fotografia

Pescadinha & Zazá

Vestiram-me um vestido azul de veludo com gola branca, bordada com bolinhas azuis, vermelhas e amarelas. Em baixo, na saia, losangos de gorgorão nas mesmas cores da gola, enfeitavam um circulo branco. Atrás das costas um laço azul compunha o vestido. Nos pés meias de renda e os meus sapatos vermelhos. Prendendo os cabelos loiros, um farfalhudo laçarote.

Quando entrei no eléctrico para Lisboa, com a Zázá ao colo causei sensação. Parecia saída de um postal ilustrado!

As pessoas interagiam comigo e eu muito orgulhosa mostrava-lhes as habilidades da Zázá.

Um senhor fez-me uma festa e disse-me: – Não sei qual é mais bonita, se a dona se a boneca.

Para a posteridade ficou a fotografia.

A Procissão

Chegou o dia. Era dia da procissão do Senhor dos Passos. Os sinos tocavam, cheirava a incenso e pétalas de flores. As janelas enfeitadas com lindas colchas emolduravam as ruas por onde a procissão ia passar.

Eu e o meu Pai íamos participar pela primeira vez numa procissão. Ele, de Opa vermelha com a cruz de Cristo ia pegar no andor do Senhor dos Passos. Eu ia a acompanhar a procissão como anjinho com um vestido de tafetá branco, peitilho com folhos, rematado por uma faixa de cetim azul. Nos ombros umas asas de penas brancas presas ao vestido por elásticos davam-me um ar celestial. Ao meu lado, um menino vestido de São Roque protestava:

-Oh mãeeee, eu não quero ir vestido de “serrote”

O andor, com Jesus Cristo vergado sobre o peso da enorme cruz, devia ser pesadíssimo, pois era carregado por 8 homens fortes (incluindo o meu Pai)

A Minha Mãe, obreira daquela nossa forçada manifestação religiosa estava muito satisfeita. Pudera, não era ela que carregava o andor.

Às tantas, o Padre nunca mais se calava e o São Roque já cansado deixou cair o cajado. O meu Pai muito vermelho já bufava por todo o lado e a mim, começaram-me a escorregar as asas. Foi quando me pus a gritar:

-Oh mãe… quero fazer chichi!!!

À noite é que foram elas. O ombro do meu Pai estava roxo e em carne viva. Ao ver-se ao espelho ele gritou-lhe:

-Granda puta… já viste o que fizeste? tu e o padre precisavam era de um enxerto de porrada.

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O Banho

A minha mãe vivia numas águas furtadas, com o meu pai meu irmão, com a tia Maria, o tio Américo, a prima Carminho que era mais ou menos da minha idade, cinco anos e com o primo Victor que era um pouco mais velho.

A casa era grande, embora esconsa tinha alguns quartos com pé direito alto, e um corredor em L que a dividia em duas partes. Só tinha um senão, era não haver casa de banho, apenas uma pia junto à janela da cozinha fazia a serventia de toda a casa.

Numa das vezes que eu fui visitar a minha mãe, vi pendurado no corredor um enorme alguidar de zinco, com um metro e vinte de diâmetro, o fundo em madeira e uma bica de um dos lados. Intimidada com a peça, perguntei-lhe o que era aquilo e ela respondeu-me que era para tomar banho, e acrescentou muito orgulhosa que o tinha mandado fazer de encomenda. Como eu dormiria lá nessa noite, pedi-lhe para me deixar tomar banho nele.

Como o prometido é devido, no outro dia pela manhã o meu pai tirou o monstro da parede e depois de arredarem os móveis lá o poisaram no chão. Eu assistia interessada aquela cena.

Três fogões de petróleo foram acesos…dois faziam muito barulho, o outro nem por isso; disseram-me que tinha a cabeça silênciosa.

Maria empresta-me a tua panela grande, para aquecer a água para a menina tomar banho!!

Depois das três panelas de água estarem a ferver, deitaram-nas dentro do alguidar e destemperaram com outra tantas de água fria. Entretanto eu fui buscar a Carminho para vir tomar banho comigo. As duas de cuequinhas vestidas, dentro do enorme alguidar, fizemos a festa e deitamos os foguetes. O primo Victor veio ver o que se passava e nós molhámos-o todo. Ele despiu-se e vai de cuecas também para dentro do alguidar. A risada e a água pelo chão era tanta que a vizinha de baixo gritava na escada:

-Óhhh Roosaaaaaaa!!!! Que merda é esta!!!! Tenho água a cair cá em baixo!!!

A tia Maria e a minha mãe vieram ver o que se passava. O primo Victor levantou-se rapidamente e as cuecas caíram-lhe pelas pernas abaixo ele saiu do banho a correr e nós rimos até fartar.

De outra vez tiveram que chamar o médico porque alguém estava doente.  A escada tinha uma clarabóia que deixava entrar o sol a jorros. Quando o médico entrou no corredor escuro, não se apercebeu do alguidar pendurado na parede e dá-lhe uma cabeçada que ecoa no corredor como se fosse um gongo e o homem só diz ….Chiça!!!

Era por estes e outros momentos, que eu nunca queria voltar para casa da Avó onde eram todos velhos e nunca acontecia nada de engraçado.

 

 

 

A Escritura

-Vem cá pescadinha, senta aqui ao pé do avô.

Diz-me lá uma coisa…tu eras capaz de ensinar o avô a escrever o nome?

-Qual nome?

-O meu nome!

-Mas…o Avô não sabe escrever o seu nome?

-Não…quando era pequeno tinha que trabalhar e nunca ninguém me mandou à escola, para aprender as letras. Mas agora estou a precisar de saber escrever o meu nome.
Para o mês que vem tenho a escritura de um prédio que comprei e não quero fazer figuras tristes.
Então…que me dizes?

-Está bem avô…Vou buscar um caderno, um lápis e uma caneta, que é para o Avô copiar por cima.

-Não digas a ninguém, isto é um segredo nosso. Está bem?

E todos os dias quando vinha da escola, a minha mão pequenina, pegava na mão calejada do meu Avô, ajudando-o a sublinhar com uma caneta as letras do seu nome; JOSÉ LOURENÇO.

Quando faltava uma semana para a escritura, ele já escrevia o nome sem a minha ajuda, isto é…o José escrevia muito bem mas o Lourenço é que estava mais difícil. Eu queria que ele aprendesse a escrever as letras uma a uma, mas ele disse-me que não tinha tempo porque a escritura do prédio era daí a dois dias.

Estavam todos presentes e o notário leu a escritura de compra e venda do imóvel. Todos concordaram como que estava escrito e foi pedido aos presentes que assinassem a escritura:

Primeiro os vendedores:

Depois o comprador…neste caso o meu Avô. E o JOSÉ saiu perfeito, agora o Lourenço é que foram elas:

Diz o notário ao olhar para a assinatura:

-Como é que o senhor se chama?

-JOSÉ LOURENÇO, disse o meu Avô sem se desmanchar:

-O senhor desculpe, mas aqui está JOSÉ LOU LOU.

Dessa vez a coisa não resultou e ele lá teve que voltar a assinar com o dedo. Mas foi a ultima vez que isso aconteceu, porque aprendeu rapidamente a escrever todas as letras que compunham o seu nome.

Corrida à Antiga Portuguesa

A praça estava cheia. As senhoras apresentavam-se bem vestidas cheirosas e de mantilhas na cabeça.

Estávamos no ano de 1957.

A orquestra iniciou: – TÁ TÁ RÁ RIIIII…

A corrida à antiga portuguesa ia começar e o meu avô que era aficionado da festa brava ia explicando:

-Este cavaleiro é o “NETO”! …representa a autoridade na arena. Seguem-no os pajens.

O “NETO” abriu as cortesias (que são a apresentação dos intervenientes na corrida).

Entram na arena, seis charameleiros, que tocam uma espécie de cornetin e um timbaleiro que toca tambor e tímbalos. Apresentam-se vestidos a rigor e são eles que abrem o espectáculo, dando-lhe pompa e circunstância.

O “NETO,” ordenou a entrada dos porta estandartes, que no século XVII representavam as casas reais. Seguiram-se-lhes os pajens dos cavaleiros.

Entram agora os coches, puxados por parelhas de cavalos, ricamente engalanados, que transportam os cavaleiros, com suas belas vestes e se dirigem à tribuna para saudar (no tempo antigo) o Rei. A pé ladeando os coches, seguem os alabardeiros, fazendo a guarda dos cavaleiros.

A orquestra faz-se ouvir….acabam de entrar os palafreneiros, que conduzem à mão os cavalos de combate.

E o Avô disse:

-Agora acabaram as cortesias:

Depois de todos saírem, entram os forcados com a azémola das farpas, que por não ser um animal nobre  é obrigada a sair a correr da arena..

Agora o “NETO” entrega a chave dos curros e dá a volta à arena, saudando todos os presentes.

Até aqui foi tudo muito bonito e colorido.

Quando o toiro irrompeu na arena, vinha chateado e enraivecido. Reparei que fios de sangue lhe escorriam pelo lombo, devido a um ferro que trazia espetado. Um bandarilheiro, muito aperaltado num justíssimo fato cor de rosa, salpicado de lantejoulas , chamava o toiro em altos berros:

-Heiiii ……toiro….. Heeeiiii!!

O Toiro solta um rugido e investe e o toureiro apontando-lhe os ferros cravou-lhe no cachaço duas bandarilhas. Na praça o povo aplaude e grita;

– Óóóólééé.

O Cavaleiro, montando um cavalo lusitano, entrou em praça, garboso na sua casaca azul dourada. Os ajudantes entregam-lhe dois ferros longos, prontos para serem cravados no animal.

-Heeii Toiro … Heeeiiii… incitava o Cavaleiro!!!

De repente o Toiro investiu e o Cavaleiro espetou-lhe as farpas. A orquestra iniciou um Pasodoble, que o povo acompanhava com palmas e óóólééés..enquanto o sangue escorria pelo cachaço do Toiro.

O Cavaleiro voltou a incitar o Toiro, que espavorido voltou a investir, sendo castigado com mais duas farpas no lombo. A orquestra voltou a tocar e as gentes em euforia gritavam e batiam palmas a compasso. Mais dois ferros foram espetados no seu dorso, e as pessoas em delírio gritavam…

-Óóóólééé…

-Avô…Avô, eles assim matam o toiro!!!

E as lágrimas corriam-me pela cara abaixo.

-Porquê… porquê isto?

Ferido e desorientado o Toiro também parecia perguntar:

-Porquê?

Era a vez do grupo de forcados incitarem o pobre bicho que já cansado e ensanguentado os olhava admirado

-Ouuuiiiii…..Ouiiii…..Ouuuiiiiiii, gritava o maluco que vinha à frente…o toiro raspava o chão com as patas e grunhia de raiva e dor….e de repente fazendo Zig Zag… atacou!!!

Os três primeiros voaram pelo ar e estatelaram-se no chão onde foram pisados quanto baste, mas um manteve-se estranhamente agarrado ao rabo do bicho, sendo arrastado, enquanto os feridos eram retirados em maca.

Eu sequei as lágrimas e bati palmas de satisfação.

Fui obrigada a ver muitas mais corridas enquanto pequena e posso dizer que sempre torci pelos toiros. Mas as largadas de toiros essas eram as minhas preferidas…ora vejam.

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Ciganitotó

Ao cimo de um monte, a uns dois quilómetros da nossa casa havia uma comunidade cigana.
Tinha eu começado mais ou menos à um mês, a primeira classe na escola oficial, quando apareceu por lá uma mulher cigana com a filha pela mão.
Dona Laurinda a professora, mandou a pequena sentar-se na carteira atrás de mim e foi lá para fora falar com a mãe da garota.

Em algazarra as crianças perguntavam-lhe:

– Como é que te chamas?
– Que idade tens, aquela é a tua mãe?
– Porque é que ela tem as saias até aos pés?
– Porque é que tem um lenço atado à volta da cabeça?
– Porque é que não tens bata?

Marcita a minha colega da esquerda disse:

– Não vêem que ela é cigana?

A pequena baixava os olhos e nada respondia.
A professora Laurinda entrou, e a mãe da pequena fez-lhe adeus e foi-se embora.

Fez-se silêncio e a professora falou:
– Esta menina chama-se Cipriana e vai ser vossa colega.
Abram o livro de leitura na página dez – disse a professora. Mas a Cipriana não tinha livro de leitura, nem cadernos, nem lápis de cor… só tinha uma ardósia e um giz.

Alguém quer sentar-se ao pé da Cipriana para ela poder seguir a lição?
Todas as crianças disseram que não e a Marcita disse:
– Senhora professora a minha mãe não me quer a falar com ciganas… Diz que os ciganos são ladrões e roubam meninas para as vender e porque eles cheiram mal.

Quando olhei para trás, os lindos olhos negros da ciganinha estavam rasos de água. Atarantada, peguei no livro e sentei-me junto da Cipriana, baixinho ela disse-me obrigada e apertou suavemente a minha mão.
À saida da escola Cipriana colou-se a mim e lá seguimos de mão dada rua abaixo.

À varanda da escola as meninas gritavam a plenos pulmões … CIGANITOTÓ … CIGANITOTÓ … CIGANITOTÓ!!!

Irritada a Cipriana respondeu-lhes gritando alto…

Cona da tua Avó!!!

Depois olhou para mim e riu-se. Eu voltei para a esquerda pois a minha casa era logo ali e ela lá foi para junto dos seus.

Logo que cheguei a casa, dei beijinho à Avó e perguntei-lhe de chofre:

– Avó, o que é que é a tua “CONA”?

Aiiiii… Aiiiiii valha-me Deus, anda uma criança na escola para aprender uma asneirada destas. Nunca mais quero ouvir isso da tua boca, senão conto ao Avô.

No outro dia apressei-me a recomendar à Cipriana, que nunca mais dissesse  aquela palavra, porque os adultos iam ficar muito zangados.

Não faz mal, quem me mandou dizer-lhes isto foi a minha avó e a minha mãe, se elas me chamassem ciganitotó.

– Então não achas bem?… estavam fartas de me chatear!!!

– Acho… e até faz verso.

Esta é a minha linda afilhada NINA filha da ciganita Cipriana. Noutros fragmentos falarei desta amizade.

 

 

Recordar é Viver

A tia Maria Vacas, era a pessoa mais doce calma e conformada que eu conheci. Tinha uma forma peculiar na conjugação dos verbos, que lhe dava uma maneira de falar engraçada. Por exemplo: – Viste… ela dizia “Vites”… Caíste… ela dizia “caítes” e por aí fora. Eu achava muita graça e gostava muito dela.

Os meus pais dividiram a casa com eles e sempre que eu visitava a minha mãe, lá estava ela agarrada ao tanque lavando para fora e passando com um pesado ferro a carvão, a roupa que garantia a subsistência de sua Família, uma vez que a vida dos homens do mar depende ainda hoje, de apanharem ou não peixe.

Atão Talininha viétes ver agente?

Vim sim tia Maria e hoje durmo cá; dizia-lhe eu toda contente.

Atão depois do jantar vamos todos jogar às cartas.

E jogavamos, ao burro em pé e à bisca. Se houvessem ovos a minha mãe fazia fatias douradas com canela e açúcar que a miudagem acompanhava com chá e o meu Pai e o Tio Américo com umas belas pingolas.

No outro dia era brincadeira certa com os meus primos e a andar num triciclo todo de ferro, muito incómodo que tinha sido do meu irmão, para grande desespero da vizinha de baixo.

Quando a Avó no outro dia me vinha buscar, era um berreiro. Não quero ir contigo Avó… quero ficar aqui… com a minha mãe; dizia-lhe eu a chorar.

Ainda hoje tenho esta mágoa no coração. Porque é que a minha mãe não dizia:

– Desculpe… não vê que ela não quer… a minha filha não quer ir, por isso vai ficar aqui na minha casa, porque eu sou sua mãe.

Mas não, ela não dizia nada, era como se entre elas houvesse um acordo tácito, e eu tinha sempre que ir com a Avó.

Tia Maria onde estiveres, obrigada por esta tua fantástica fotografia me ter trazido à memória estes fragmentos da minha vida.

Não à dúvida que “RECORDAR É VIVER”.

O Menino de minha Mãe

Leram bem, não vou escrever sobre o poema de Fernando Pessoa “O Menino de sua Mãe”.

É mesmo sobre o menino da minha mãe que eu quero escrever, para que se não perca no tempo a engraçada história desta fotografia.

Depois de casarem os meus pais ganharam este menino, que segundo a minha avó, foi muito desejado e amado.

Primeiro filho, primeiro sobrinho e primeiro neto.

A minha mãe resolveu fazer uma fotografia artística ao bebé.

Nessa época 1943, estava na moda fotografar os bebés até ao primeiro mês de idade, conforme vieram ao mundo… os meninos mostrando a pilinha e as meninas mostrando o rabinho.

Ora o menino da minha mãe, já ia fazer três meses e era forte e bem apessoado.

O fotógrafo chamou-lhe a atenção para isso, mas ela não abdicou… queria a fotografia a ver-se o sexo do seu bebé.

Dirigiram-se a uma mesa preparada para o efeito com vestes de cetim azul, e lá deitaram o menino de barriguinha para cima.

Verdade verdadinha, o bebé já mal cabia na mesa. Mas elas lá estavam uma de cada lado para o manter sossegado.

Entretanto o fotografo já com a maquineta em ordem, pediu-lhes para se afastarem para proceder à fotografia.

Só que o menino estava a pau e resolveu fazer a sua recente habilidade… voltou-se de repente e voltou a voltar-se… foram dois em um, não ficou com a pilinha à mostra e catrapum para o meio do chão.
A minha avó gritava… o bebé berrava… e a minha mãe queria bater no fotógrafo.

 

A D. Henriqueta e a menina Antonieta

Ao lado da nossa casa havia uma escola particular, que servia também de habitação às duas professoras, mãe e filha. A mãe era professora de canto lírico, a filha era professora primária.

A mãe D. Henriqueta era uma mulher de cinquenta e tal anos, franzina e baixinha, mas com uma potente voz que todos os dias bem cedo exercitava. Lá lá lá lá ri lá lá lá lá…Lá lá ri lá ri lá ri lá lá…

O meu Avô não resistia e dizia
– Lá está a galinha velha a cacarejar.

O recreio da escola dava para o meu quintal e desde muito novinha empoleirada num banco eu assistia entusiasmada às cantigas de roda que as meninas cantavam:
Olha a triste viuvinha, que anda na roda a chorar, anda a ver se encontra noivo para com ela casar.

Havia também o jogo da macaca e o jogo da mamã dá licença…. quantos passos? – um à bebé… dois à gigante… aquilo deliciava-me.

– Avó quero ir para a escola!
– Não podes minha filha, ainda és pequena – Talvez para o ano.
– Mas eu quero!!!

O Avô entrou, ouviu a conversa e perguntou-me porque é que eu queria ir para a escola:
Para aprender a ler e a escrever e para brincar com as meninas.

Quem nos abriu a porta foi a D. Antonieta que nos mandou entrar para a sala do piano.
– Então o que o traz por cá Sr. José?
– Olhe senhora professora é que a minha neta quer vir para o pé de si para aprender as letras.

Ela faz em Dezembro seis anos, mas se a senhora consentir e a titulo particular, pagando o que os outros pagam…

A menina Antonieta disse que não era bom para mim uma vez que quando fosse para a escola oficial aos sete anos iria aborrecer-me porque já sabia tudo o que estava a ser ensinado.

Nesse mesmo dia fui com a Avó à loja do Sr.  Guerra, comprar sarja branca e grega para enfeitar os meus dois lindos bibes escolares.

Quando às nove horas da manhã a menina Antonieta me apresentou às colegas, a sala de aula pareceu-me aterradora. Na parede uma foto do presidente da republica, outra do chefe do governo e ao meio um crucifixo. Na secretária da professora, ao lado de um livro da terceira classe a célebre menina dos cinco olhos. Mas depois de cantarmos a Portuguesa a coisa desanuviou.

Da menina Antonieta tenho boas recordações, com ela aprendi o abecedário, os números e a escrever o meu nome. Também me ensinou a versejar.

Nunca a vi utilizar a menina dos cinco olhos.

Cavalgando o Vento

O tio “Pico” comprou uma mota, uma Norton, preta e dourada. A mota era intimidantemente linda.

Fui pedir ao Avô para me deixar ir passear na mota nova do tio “Pico”.

O Avô não gostou muito da ideia, disse que coisas com duas rodas, não eram de fiar; e que se aquilo caísse o para-choques seriamos nós e não deixou. Mas o Avô foi para o mar, a avó foi ao cabeleireiro e o tio “Pico” disse que íamos só dar uma pequena voltinha para ver se eu gostava.

Primeiro assustei-me com o roncar do motor, depois com as curvas, em que parecia que ia cair a qualquer momento, mas já na Marginal, quando começamos a ganhar velocidade, o medo passou e senti-me “Pégaso” cavalgando o vento.

Chegados à praia do Guincho, o tio “Pico” disse que se eu quisesse podia despir a roupa e ir brincar perto da água, ou até tomar banho, pois não estava ninguém a ver e também não era preciso ninguém saber, porque ele não dizia nada à Avó.

Nesta altura eu devia estar quase a fazer os seis anos porque ainda não andava na escola, mas algo me disse que não o devia fazer.

Então ele pediu-me para lhe mostrar as maminhas, para ver se já estavam a crescer. Contrariada levantei a blusinha e ele agarrou-me e beijou-me o peito sofregamente. Assustada… empurrei-o com força e disse-lhe:

– Tá quieto, quero ir para casa, vou dizer ao Avô.

Tás doida miúda?… O que é que queres dizer ao Avô?

Olha que nunca mais vais passear comigo!!!

Não me arranjes sarilhos!!!

Vamos embora!

Apesar do “Pico” ficar esquisito, eu gostei muito de andar na mota nova.

Fábulas e Lendas

Gostava muito das fábulas e das lendas que a minha Avó me contava, sempre que eu a questionava em busca de respostas.

Nessa manhã os pescadores trouxeram um grande “PEIXE-GALO”, alguns linguados e uns quantos salmonetes.

Eu nunca tinha visto um peixe-galo, tampouco um salmonete ou um linguado e estranhei o contraste entre eles.

Os salmonetes eram belos, de cor rosa, com tons de ouro e escamas que pareciam lantejoulas.

Os linguados pareciam ter sido atropelados, tinham os olhos do mesmo lado, o corpo achatado, e a boca ao lado… que peixe tão feio!!!

O “PEIXE-GALO”, chamou a minha atenção por ter uma dedada marcada de cada lado do corpo.

Depois de me mostrar os peixes, a avó pegou no peixe galo e começou a contar:
– Esta história aconteceu quando Jesus andava a pregar o Evangelho com os seus companheiros e Pedro lhe disse que estavam sem comida e sem dinheiro.

E Jesus disse:
– Pedro, se assim é vamos pescar.

Quando se fizeram ao mar e Pedro se preparava para lançar as redes, apareceu junto ao barco um grande peixe-galo com algo brilhante na boca. Jesus baixou-se para apanhar o peixe e tirou-lhe da boca uma bela moeda de ouro que deu a Pedro.
Conta a lenda que estas marcas no corpo do peixe, são as impressões digitais de Jesus, que ficaram para sempre marcadas neste saboroso peixe.

Avó e o linguado, porque é que ele é tão feio e o salmonete é tão bonito?

E a avó contou:
– Conta a lenda, que o linguado ficava muito incomodado, sempre que um belo salmonete se passeava perto do sitio onde ele se encontrava. Um dia o salmonete chegou mais tarde e educadamente perguntou-lhe:
– Oh linguado… a maré esta cheia ou vazia?

Malcriado, o linguado arremedou o salmonete e pondo a boca ao lado disse:
– Oh linguadoamarétácheiaouvazia!!!

E por castigo divino ficou assim para sempre.