O grande desgosto

O ” quarto azul ” voltou a ter protagonismo, é que a tia ” Licas ” ia casar.
Conjuntos de cozinha, serviços de jantar, conjuntos de talheres, vassouras, lençóis, mantas, toalhas… o quarto parecia um armazém. Eu lá ia com elas, a Avó e a tia Licas, às compras a Lisboa. Íamos ao Bráz & Brás, aos Grandes Armazéns do Chiado, ao Ramiro & Leão, que tinha um elevador muito vistoso.

Depois das compras íamos lanchar à Confeitaria Nacional, e eu tinha direito a escolher um ou dois brinquedos na Quermesse de Paris.

À tardinha, o ” Preto,” era como eu chamava ao noivo da tia, ia buscar-nos no seu ” Morris ” às arcadas da Praça do Comércio, para nos levar para casa.

O dia do casamento estava próximo. Já tinham casa alugada, iam morar em Carnaxide, num primeiro andar com quintal, mesmo ao lado dos Bombeiros.

O quintal era muito agradável, dividido em seis talhões, três de cada lado e ao meio um poço com um arco e roldana, de onde se tirava uma água tão fresca, que embaciava o copo. Para mim o único senão era ser junto aos Bombeiros, que sempre ao meio dia e  quando havia fogo, tocavam a sirene, que quase nos rebentava os tímpanos.

O dia do casamento da minha tia Licas, foi o dia do meu primeiro grande desgosto.

Eu tinha seis anos, e ela foi a única pessoa que viu o meu sofrimento. Olhou para mim com pena, e com as suas mãos macias afastou as lágrimas que me corriam pelo rosto.

-Não chores, vais a casa da tia quando quiseres … e dormes lá… prometo!!!

Nessa noite, sozinha no meu quarto eu chorei muito, e senti pela primeira vez o peso da solidão.

A Banhos na Pancada

Ficava a duzentos e cinquenta metros de altitude, na encosta de Monchique, a sete quilómetro da Aldeia. A casa feita de granito e xisto, era onde vivia o  senhor Amílcar. Ver “O Mestre licoreiro” e o “Alquimista“.

Ao lado havia um casebre, com um grande alambique em cobre, onde o senhor Amílcar destilava a aguardente de medronho e fazia os seus licores.

Em frente da casa tinha uma horta e a perder de vista ,um pomar de frutas que a  tia Ana cuidava com desvelo.

Na cavalariça, estava um macho chamado “Ruivo”, que atrelavam a uma carroça, quando era preciso ir à aldeia vender os artigos que fabricavam.

Não faltava nada naquele monte. A mesa estava sempre posta com presunto de porco preto, chouriças, queijo fresco, mel, muita fruta e o pão que a Ti Ana cozia no forno de lenha.

As galinhas andavam à solta, e eu dava-lhes pão, milho e couves.

Tinham oito ovelhas,  cada uma com seu nome,  que pastavam à vontade e se as chamássemos vinham comer à nossa mão.

Também havia uma vaca malhada chamada “Estrelinha”, que dava um leite grosso e gostoso cheio de nata.

Era aqui que nós passávamos a última semana, para o Avô fazer a sua cura  das águas termais à bronquite e a Avó aos rins e ao reumático.

O senhor Amílcar nasceu na serra e conheci-a como à palma das suas mãos. Ele sabia onde nasciam as águas curativas.

Só fui com eles uma única vez. Pelo caminho ia-nos mostrando árvores, ervas e plantas medicinais. Lembro-me de termos parado num riacho e de ele ter apanhado para mim uma linda borboleta, mas o cansaço foi tal que quando chegamos a casa, eu só acordei no outro dia.

A cascata de água quente e cristalina de onde se banhavam e bebiam a água estava dentro de uma gruta em plena serra, e o barulho da água era tão estrondoso que os locais lhe chamavam de “Pancada”.

A verdade é que quando faziam este tratamento, passavam um santo inverno.

Eu ficava com a Ti Ana que assim que os apanhava longe, ia ao alambique e enchia um copo de medronho acabado de destilar, e depois de um grande Aaaaaah!!!!! Dizia:

Sabe uma coisa menina… este ano a aguardente está mais fraca.

 

“Cuecas de Gola Alta”

Dizia-me a minha avó, que quando se casou, não trouxe cuecas no enxoval.

É que não era hábito essa peça de roupa nas mulheres de Alvor, nos primórdios de 1900.  ” Ver a mulher e a sardinha quer-se pequenina.

À minha pergunta, então como é que as mulheres desse tempo faziam xixi, ela respondeu-me que as saias eram compridas e tinham algibeiras.

Por debaixo da saia, vestiam um saiote que tinha duas aberturas até à altura das algibeiras da saia.
Então, com as mãos dentro dos bolsos das saias, arredavam os saiotes interiores, abriam as pernas e depois era uma questão de pontaria.
Normalmente mijavam de pé.

As minhas cuecas eram de algodão e vinham em caixinhas de seis, duas azuis, duas rosas e duas brancas.

Uma das caixas era um numero acima, para vestir quando as outras já estivessem mais usadas, mas eu não conseguia ter coisas por estrear!!!

 

 

 

Tótó o cão marinheiro

Tótó era um cão,  arraçado de cão de água. O seu pêlo era amarelo e comprido, mas tosquiavam-no à leão deixando uma melena de pêlo na ponta da cauda.

Tótó era corajoso,  inteligente, meigo e muito amigo.

Na traineira “Isabel Lourenço“, era mais um camarada. Ganhava como qualquer companheiro,  meia parte do peixe, que depois era vendido, e trocado por carne e ossos para a sua alimentação.

Mas não pensem que não merecia o que ganhava; Totó estava sempre atento e na altura da recolha das redes, se algum peixe se escapava, se algum cabo caía ao mar, ele mergulhava para o recuperar.

Dizia o Avô que quando pescavam atum no Algarve,  ele às vezes  ficava agitado e gania, e quando eles olhavam com atenção para o horizonte detectavam ao longe uma barbatana de tubarão.

O Totó tinha sete anos quando o Avô vendeu a “Isabel Lourenço“, por isso veio para casa viver connosco, mas isso é outro fragmento…

 

 

Algarve terra de encantos

Era em Olhão, vila branquinha, com suas ruas sinuosas, lembrando labirintos e as suas casas em forma de cubos, tendo por telhados açoteias e mirantes, que nós passávamos alguns dias em casa de familiares.

À noite na açoteia, olhando o céu estrelado o Avô explicou-me como aquela estrela que brilhava mais que todas, era importante para os pescadores e que se chamava Estrela Polar, ou do Norte.

Ao redor os familiares juntaram-se a nós, trazendo figos secos com amêndoas e nozes, bolinhos de amêndoas e alfarroba e o medronho da Serra de Monchique que o meu avô tanto apreciava. À vez iam contando lendas, histórias e costumes Algarvios.

Quase todas as lendas falavam de mouras encantadas dentro de poços, onde à meia noite se ouviam os seus lamentos, à espera que alguém corajoso lhes quebrasse o encanto.

As lendas dos lobisomens e de almas penadas também me arrepiavam.

E as pragas malévolas que as mulheres antigas rogavam a quem as contrariava… eram assim:

Não sabia dar-te já uma dor tão grande que nunca mais passasse, que quanto mais corresses mais te doesse e, se parasses rebentasses.

ou então:

Permita Deus que fiques tão magro… tão magro… tão magro… que passes por o fundo de uma agulha de braços abertos.

ou ainda:

Permita Deus que tenhas uma febre tão grande… tão grande que até te derreta a fivela do cinto.

Com toda esta riqueza verbal,  eu adormecia embalada pelo reino da fantasia.

De manhã apanhávamos o barco para um dia bem passado na bela praia da ilha de Armona.

Depois da praia, lambuzava-me com um gelado de três bolas no jardim de Olhão.

Tudo isto faz parte de um universo mágico que relembro com muita saudade.

E deixo-vos com este brejeiro baile mandado, com as môças e môces marafades do meu Algarve.

À esquerda roda o bailo
Uma velha com um chocalho
Á esquerda roda a coxa
Carrapatos na xoxa

A esquerda roda o bailo
À direita o corridinho
Toda a moça que é bonita
Também dá o seu peidinho

 

O Pagador de Promessas

Sentados nos bancos de jardim, em frente à igreja de Alvôr, ouvia atentamente o meu avô:

– Sabes quando isto que te vou contar aconteceu, tu ainda não tinhas nascido.

A Europa encontrava-se em guerra.  Portugal era um país neutro, mas a vida era muito difícil, havia racionamento de bens, como o açucar , o café, a manteiga, os cereais, havia falta de quase tudo. Nessa altura o avô trabalhava mais do que o costume para que lá em casa nada faltasse

Então com um tempo de vendaval, o avô resolveu sair para a pesca, esperando que mais uma vez tivesse sorte e apanhasse o peixe que mais ninguém se atrevera a arriscar.

Mas nesse dia a coisa correu mal.

Quando saímos a barra o mar começou a ficar medonho. As vagas eram tão altas, que quase partiam pelo meio a ” Isabel Lourenço“.

O vento e as vagas varriam o convés de uma ponta à outra.

Era já madrugada e aquilo não havia meio de parar.

Eu mantinha-me na casa do leme quando um camarada me chamou:

Venha aqui mestre Zé!

Quando cheguei à casa da máquina os camaradas choravam:

– Mestre Zé, vamos morrer todos… o barco não aguenta isto por muito mais tempo!!!

– Venha… junte-se a nós, vamos rezar ao Senhor Jesus de Alvôr.

– Eu não me acredito nessas tretas!

– Nós acreditamos por si!

– Por favor mestre Zé… acompanhe-nos nesta promessa.

E minha filha, eu vi… cinco homens valentes… chorando como crianças… implorando pela sua fé aos céus que lhes valesse , que acalmasse as águas revoltas e salvasse as suas vidas.

Prometeram que encheriam o altar do Senhor Jesus de velas, de cada vez que visitassem Alvôr.

E depois Avô o que aconteceu?

Depois o dia clareou, o vento amainou e o ” Isabel Lourenço ” voltou são e salvo ao ponto de partida.

Por isso aqui estou eu e tu a honra-los na sua promessa.

 

Pescadinha & Avô na Praia de Alvôr

 Eu e o Avô na Praia da Rocha (Portimão) em 1955

 

Igreja de Alvôr ” A promessa “

Cruz com a imagem de Jesus Cristo
Como sabem, o meu avô era natural de Alvôr, ver ( ” O Salto ” 09/Mai/2o12 ).

Quando chegávamos ao Algarve, ficávamos em Portimão, que era um porto de pesca com lota, mas tirávamos sempre um ou dois dias para irmos até Alvôr.

Numa dessas viagens, devia eu ter sete anos, o meu avô pediu-me que o acompanha-se até à Igreja de Alvôr.

Qual não foi o meu espanto, quando ele me convidou a ajudá-lo a encher de velas acesas o altar do Senhor Jesus de Alvôr.

O espanto era legítimo uma vez que o meu avô era um homem ateu.

Minha avó ao contrário, era extremamente religiosa e ele tentava constantemente contrariar os conhecimentos  que ela me tentava transmitir.

Posto isto perguntei-lhe:

Então o Avô que está constantemente a gozar com a Avó quando ela me ensina algo sobre religião, vem ao altar do Senhor Jesus, enche-o de velas, e quer que eu o ajude a acende-las?

Não o compreendo!!!

Está bem… ajuda-me a acender as velas que eu já te conto a história.

 

 

 

 

A lenda do Senhor Jesus de Alvôr

Conta a lenda que os  pescadores, estando na faina, viram ao longe um vulto que se dirigia rapidamente para a praia.

Curiosos aproximaram os seus barcos para ver o que seria e depararam-se com um caixão.

Receosos os pescadores acompanharam-no até que o caixão encalhou na praia.

Atónitos e surpreendidos, os pescadores correram à povoação, contando às suas gentes o que tinha acontecido.

Toda a povoação de Alvôr se deslocou até à praia para verem o achado.

Ao abrirem o caixão viram dentro a imagem do Senhor Jesus.

Todos se ajoelharam.

Decidiram levar para a igreja a imagem, mas como era enorme e pesada foi preciso uma junta de bois para a transportar.

No caixão com letras gravadas a ouro dizia: – Senhor Jesus… Praias de Alvôr.

Para as  gentes de Alvôr, não havia dúvida que aquilo fora uma dádiva dos céus.

Segundo a lenda, o Senhor Jesus de Alvôr fez logo grandes milagres,  livrando de morte certa os pescadores que no mar se debatiam com grandes tempestades.

A Máquina do Tempo

Todos os anos por volta de Julho e até ao fim de Agosto, o barco  “Pai e Filhos”, ia pescar para o Algarve. Uma semana depois seguíamos nós, isto é… o Avô, a Avó e eu. Viajávamos de comboio, que saía da estação do Barreiro.

Na altura 1950 mais ou menos, fazer aquela viagem era para mim  algo sobrenatural. Eu tinha medo, medo e curiosidade, daquela máquina assombrosa, que chegava a resfolegar, silvando, cheirando a ferro em brasa, e que exigia ser constantemente alimentada. Dois seres afadigavam-se nessa missão. Vestiam camisolas cavadas, enegrecidas  como eles,  pela fuligem e pelo fumo.

Quando o chefe da estação apitava, o mostro respondia com um enorme silvo. Eu sentia-me dentro de uma máquina do tempo, que se deslocava devagarinho e começava a falar cada vez mais depressa, conforme ganhava velocidade… Pouca-Terra … Pouca -Terra.. Poucaterra..poucaterrra.

Depois a planície, o cheiro a melão maduro, a figos e a amêndoas, as passagens pelos túneis a que antecedia o silvo estridente da coisa, logo seguido do acender  das luzes, em que o comboio se enchia de fuligem e fumo.

Nessa altura, as pessoas viajavam com as coisas mais incríveis. Lembro-me de uma senhora que levava duas galinhas dentro de uma cesta, a certa altura uma das bichas soltou-se, e era vê-la a correr pelo corredor, voando e cacarejando.

Chegados a Tunes, tínhamos que mudar de comboio, este mais moderno que nos levava até Faro. Contudo era viagem para seis ou sete horas.

Depois era desfrutar o Sol e as belas praias de quentes águas.

Comboio a vapor a entrar num tunel
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A “Olhos de Boi”

Ás vezes o peixe ainda chegava vivo lá a casa. Sardinhas e carapaus, eram o principal da pesca, mas na rede vinham sempre três ou quatro linguados, duas ou três pescadas, alguns robalos etc. Para casa vinha sempre o que de melhor se pescara.

Nós comíamos bastante peixe, mas não conseguíamos consumi-lo todo, por isso o Avô mandava distribui-lo pelos vizinhos, que normalmente apreciavam o gesto.

Em frente da nossa casa, num prédio com dois andares, morava no R/C um casal com um filho. Eram gente muito pacata e educada. A senhora era alta e magra, com cabelos pretos com uns olhos muito grandes e pestanudos.

As minhas tias chamavam-lhe a “Olhos de Boi”. Toda a minha vida eu ouvi, quando se referiam à vizinha, chamarem-lhe a “Olhos de Boi”.

Acontece que o Avô me perguntou se eu queria ir levar o peixe às vizinhas, e eu toda contente aceitei.

A coisa não me correu muito bem, enganei-me e toquei para o primeiro andar:
 
– Quem é ?
– É da casa da D. Olhos de Boi?
– Toca no outro botão menina!

Assim fiz, e voltei a perguntar:
 
– É da casa da D. Olhos de Boi?
– A senhora abriu a porta, olhou para mim com os olhos muito abertos e pestanejou três vezes…
– Assustei-me,  larguei a cesta com o peixe , e corri espavorida para casa.