Ciganitotó

Ao cimo de um monte, a uns dois quilómetros da nossa casa havia uma comunidade cigana.
Tinha eu começado mais ou menos à um mês, a primeira classe na escola oficial, quando apareceu por lá uma mulher cigana com a filha pela mão.
Dona Laurinda a professora, mandou a pequena sentar-se na carteira atrás de mim e foi lá para fora falar com a mãe da garota.

Em algazarra as crianças perguntavam-lhe:

– Como é que te chamas?
– Que idade tens, aquela é a tua mãe?
– Porque é que ela tem as saias até aos pés?
– Porque é que tem um lenço atado à volta da cabeça?
– Porque é que não tens bata?

Marcita a minha colega da esquerda disse:

– Não vêem que ela é cigana?

A pequena baixava os olhos e nada respondia.
A professora Laurinda entrou, e a mãe da pequena fez-lhe adeus e foi-se embora.

Fez-se silêncio e a professora falou:
– Esta menina chama-se Cipriana e vai ser vossa colega.
Abram o livro de leitura na página dez – disse a professora. Mas a Cipriana não tinha livro de leitura, nem cadernos, nem lápis de cor… só tinha uma ardósia e um giz.

Alguém quer sentar-se ao pé da Cipriana para ela poder seguir a lição?
Todas as crianças disseram que não e a Marcita disse:
– Senhora professora a minha mãe não me quer a falar com ciganas… Diz que os ciganos são ladrões e roubam meninas para as vender e porque eles cheiram mal.

Quando olhei para trás, os lindos olhos negros da ciganinha estavam rasos de água. Atarantada, peguei no livro e sentei-me junto da Cipriana, baixinho ela disse-me obrigada e apertou suavemente a minha mão.
À saida da escola Cipriana colou-se a mim e lá seguimos de mão dada rua abaixo.

À varanda da escola as meninas gritavam a plenos pulmões … CIGANITOTÓ … CIGANITOTÓ … CIGANITOTÓ!!!

Irritada a Cipriana respondeu-lhes gritando alto…

Cona da tua Avó!!!

Depois olhou para mim e riu-se. Eu voltei para a esquerda pois a minha casa era logo ali e ela lá foi para junto dos seus.

Logo que cheguei a casa, dei beijinho à Avó e perguntei-lhe de chofre:

– Avó, o que é que é a tua “CONA”?

Aiiiii… Aiiiiii valha-me Deus, anda uma criança na escola para aprender uma asneirada destas. Nunca mais quero ouvir isso da tua boca, senão conto ao Avô.

No outro dia apressei-me a recomendar à Cipriana, que nunca mais dissesse  aquela palavra, porque os adultos iam ficar muito zangados.

Não faz mal, quem me mandou dizer-lhes isto foi a minha avó e a minha mãe, se elas me chamassem ciganitotó.

– Então não achas bem?… estavam fartas de me chatear!!!

– Acho… e até faz verso.

Esta é a minha linda afilhada NINA filha da ciganita Cipriana. Noutros fragmentos falarei desta amizade.

 

 

O meu pai

Nasceu em 1916, na casa da rua das Hortas em Pedrouços, perto do chafariz da princesa e a dois passos do mar.

Naquele tempo não era necessário o nome da mãe, por isso chamava-se só José Lourenço.

Cresceu como um cabrito à solta, percorrendo descalço a praia e os arredores.

Odiava sapatos, por isso escondia-os, só os calçando à tardinha, quando a fome apertava e era preciso voltar para casa.

Escola também não era com ele, não fora feito para aquele subjugar, para aquela prisão.

A professora adorava gatos, só na escola haviam cinco que a senhora estimava como filhos.

Um dia desmoralizada com a indiferença dele para com os deveres, pegou na menina dos cinco olhos e deu-lhe dez réguadas.

A resposta saiu-lhe tão rápida como as lágrimas que lhe saltaram dos olhos:
– Ganda-puta!!!
– Hás-de pagá-las!!!

No dia seguinte levou para a escola um saco de sarapilheira e assim que lhe foi possível foi juntando um a um os simpáticos gatinhos.

Mais tarde na praia, rolou diversas vezes o saco com os gatinhos lá dentro.

Quando lhes abriu o saco os animais fugiram espavoridos e nunca mais apareceram.

D. Etelvina recusou-se a tê-lo na escola, por isso foi para o mar com o pai.

Tinha dez anos.