O Alquimista

Eu não via a aparência rude do senhor Amílcar. Para mim ele era um Alquimista… um Mago… daqueles com barrete pontiagudo e capa de veludo.

Transformar as frutas e as bagas em líquidos coloridos com sabores fantásticos… encantava-me.

Eu não desgrudava do senhor Amílcar e apercebi-me que à sua sabedoria não faltavam mistérios e segredos. Antes de se ir embora fazia para o Avô, que tinha bronquite crónica, um creme para pôr no peito à base de cera de abelha, eucalipto e cânfora, e para a Avó, fazia um creme de pétalas secas de rosa.

Eis aqui a receita de um dos licores que eu mais gostava:
 
 
 
Licor de Tangerina

6 tangerinas inteiras
1 litro de uma boa aguardente de vinho (eu só tinha direito a 1 litro de agua mineral)
1/2 kilo de açucar mascavado
4 cravos da India
raspa de nós moscada
um pau de canela

Picam-se as tangerinas com um alfinete  a toda a volta e põem-se em infusão num frasco de boca larga com 1 litro de boa aguardente de vinho.

Junta-se um pouco de nós moscada, um pau de canela e o 1/2 kilo de açucar mascavado e 4 cravos da India.

Deixa-se em infusão durante 20 dias e ao fim deste tempo filtra-se.
 
 
 
Fácil, não é?

Bom proveito.

O Mestre Licoreiro

O Senhor Amílcar era um homem baixo de feições grosseiras.

Mais ou menos de três em três anos instalava-se lá em casa durante um mês para fazer os seus licores.

Trazia sempre dois cestos de verga grandes carregados com os seus apetrechos de trabalho.

Sacos de linho cheios de diversas ervas apanhadas na serra, caixas de madeira cheias de bagas de diversos feitios, latas que continham pós coloridos, garrafas e frascos cheios de líquidos de cores vibrantes.

Em cima da mesa estavam dois livros:

Um com magníficos rótulos com muitos recortes dourados e desenhos de frutas… eram lindos, e estavam protegidos por papel transparente.

O outro, eram diversos papeis cosidos artesanalmente e estavam em bastante mau estado…estavam mesmo sebosos! Esse era a soma de suas experiências.

 

Mas a mistura dos cheiros… a anís, a côco, a amêndoa, a café, a  mel, a damascos… era fantástico!

Ainda hoje os sinto quando me lembro dele.

As Consequências

A muito custo, porque os limos o faziam escorregar, o senhor guarda lá conseguiu sair do chafariz. Puxou da pistola e disparou para o ar dois tiros.
A esquadra era ali bem perto, colegas vieram rapidamente em seu auxilio e deram voz de prisão ao meu pai.

Estávamos em 1938 e os actos praticados eram considerados muito graves. Rasgar uma farda, e pôr um senhor guarda de molho, era caso para um anito de prisão efectiva.

Os amigos foram-se chegando e explicavam que o Zé era um bom rapaz que não fazia mal a ninguém, que aquilo foi um copito a mais.
Entretanto avisaram o meu avô que só se deslocou à esquadra no dia seguinte para falar com o chefe, de quem era conhecido.

O guarda nunca desistiu da queixa, mas durante sete anos, que foi o tempo da extinção do processo, comeu todos os dias o melhor peixinho fresco da sua vida.

Durante muito tempo os amigos quando o viam gritavam-lhe:

Óh Zé Ganço… vai dar banho ao policia.

O banho do policía

Gostava de se sentar nos bancos do jardim que ladeavam o largo da princesa, muito perto de sua casa.
Era um sitio muito fresco rodeado de árvores. No centro o chafariz, deixava correr de quatro bicas agua fresca e cristalina.
Ouvir o som da água a correr, o chilrear dos pássaros e ver as gentes que volta e meia se apeavam na paragem do eléctrico, aliado ao sabor do fumo de um cigarro, deixavam-no de bem com a vida.

Mas lidava muito mal com a frustração e quando a minha mãe não lhe aceitou o pedido de namoro, foi para a taberna “Cova Funda”, que ficava na parte de baixo do chafariz e apanhou um grande pifo.
Depois foi sentar-se na beira do chafariz da princesa a carpir as suas mágoas.

Foi quando um policia se aproximou e lhe disse:

– O senhor não pode estar aí… pode cair e afogar-se!
– E o que é que você tem com isso?
– Já lhe disse… tem que sair daí! Vá para casa…
– Para casa vá você… eu só saio daqui quando me apetecer, até lhe canto uma cantiga…

Daqui não saio daqui ninguém me tira
Daqui não saio daqui ninguém me tira

Daqui não saio daqui ninguém me tira
Daqui não saio daqui ninguém me tira

– O senhor está a gozar a autoridade, olhe que lhe dou ordem de prisão; disse o guarda agarrando-o pelo braço…
– Tire daí a manápula senão a coisa azeda!!!
E a coisa azedou mesmo, quando o guarda o puxou para que saísse. Jogou-lhe a mão à farda e arrancou-lhe os botões todos. Depois pegou no senhor guarda e deu-lhe banho no chafariz.


Foto Original de Luis Miguel Inês:http://luismiguelines.blogspot.pt/

Maria Rosa

Maria Rosa fez-se uma linda mulher e o meu pai caiu de amores por ela.

Ela não lhe deu grande bola era filha irmã e neta de pescadores. Sabia bem as dificuldades que isso acarretava.

Não queria para ela essa vida, queria para ela alguém que não estivesse ligado ao mar.

Além disso havia certo rapaz que trabalhava na construtora e era amigo do Jorge…

Quando soube, o meu pai fez uma cena de ciúmes.
Depois mexeu os cordelinhos junto dos irmãos e do pai de quem era amigo e companheiro de trabalho.

Convenceram-na. Ou o Zé Ganso, que conheciam desde miúdo e até tinha um pé de meia para quando casasse, ou mais ninguém. O outro não o conheciam de lado nenhum.

Ela argumentou que o Zé bebia às vezes, e andava com mulheres da vida.

É sinal que não é maricas, foi a resposta.
Até a mãe lhe disse: – Filha quando casar ele assenta.

Para o meu pai

Zé Ganso (Pai)

Tinha o andar gingão daqueles que passam muito tempo sobre as ondas.
Lentamente, perdeu a alcunha de Zé Russo e passou a ser o Zé Ganso.
Na vida teve dois grandes amores; o “Mar” e a sua “Rosa”.

Para ele em jeito de homenagem:

BALADA DE UM PESCADOR

Sou um pescador,
Embalo a vida nas ondas do mar.
Sou um pescador,
Meus beijos salgados são para te dar!

Lá longe o farol e e as ondas sem fim,
Dizem-me baixinho que esperas por mim.
Mas oh Rosa minha quando eu chegar,
Levo-te sardinha e beijos salgados
Pelas ondas do mar

Sou um pescador,
Embalo a vida nas ondas do mar.
Sou um pescador,
Meus beijos salgados são para te dar!

A minha mãe

Maria Rosa (Mãe)

 

Era uma rapariga morena, de cabelos pretos compridos e ondulados. Os seus olhos verde escuros, tinham os seus mistérios. Na boca bem desenhada sempre um sorriso, mas o que mais sobressaía era o peito, generoso e empinado.

Chamava-se Maria Rosa e era a filha mais nova do ti Zé Ramos e da senhora Adelina.

Moravam na rua das Hortas, e o ti Zé Ramos trabalhava com o filho Américo no barco do meu avô.

A ” Rosinha dos limões ” como o meu pai lhe chamava, estava sempre lá em casa.

Era a grande amiga da minha tia Susana.

O Zé Russo

Os homens do mar eram rudes. Nada de delicadezas que a vida era dura e cheia de perigos.

O pequeno José Lourenço, passou como todos os camaradas do barco a ter uma alcunha.

Com o cabelo quase branco de tão louro que era, não foi difícil, passou a ser o ” Zé Russo “.

E o Zé Russo foi crescendo, iniciando-se no trabalho árduo da vida de marinheiro, aprendendo a fumar, e beber vinho; que homem que não fumasse e não bebesse não era homem.

Aos fins de semana era sagrado, iam às putas.

Aí está ele com a rapaziada da sua idade: longa madeixa ao vento, cigarro na boca ao lado.

Zé Russo

 

O meu pai

Nasceu em 1916, na casa da rua das Hortas em Pedrouços, perto do chafariz da princesa e a dois passos do mar.

Naquele tempo não era necessário o nome da mãe, por isso chamava-se só José Lourenço.

Cresceu como um cabrito à solta, percorrendo descalço a praia e os arredores.

Odiava sapatos, por isso escondia-os, só os calçando à tardinha, quando a fome apertava e era preciso voltar para casa.

Escola também não era com ele, não fora feito para aquele subjugar, para aquela prisão.

A professora adorava gatos, só na escola haviam cinco que a senhora estimava como filhos.

Um dia desmoralizada com a indiferença dele para com os deveres, pegou na menina dos cinco olhos e deu-lhe dez réguadas.

A resposta saiu-lhe tão rápida como as lágrimas que lhe saltaram dos olhos:
– Ganda-puta!!!
– Hás-de pagá-las!!!

No dia seguinte levou para a escola um saco de sarapilheira e assim que lhe foi possível foi juntando um a um os simpáticos gatinhos.

Mais tarde na praia, rolou diversas vezes o saco com os gatinhos lá dentro.

Quando lhes abriu o saco os animais fugiram espavoridos e nunca mais apareceram.

D. Etelvina recusou-se a tê-lo na escola, por isso foi para o mar com o pai.

Tinha dez anos.

A morte

Procurou os melhores médicos em pneumologia. Fez todos os medicamentos recomendados. Entretanto ela abortou, e os médicos recomendaram um sanatório. Assim se fez.

Segundo a minha mãe ela estava a desistir. Queria ver o Jorge, mas isso já não era possível.

O Jorge morreu da doença, mas também de pena e de saudade. Com medo de lhe agravar o estado de saúde ninguém lhe disse nada.

Ela disse que não lhes perdoava essa atitude.

Morreu na casa de Algés nos braços do pai.